Carlos Etchevarne
Prof. de Arqueologia do Departamento de Antropologia FFCH/UFBA


P - A Arqueologia pode dar sua contribuição para interpretar aquilo que consideramos Bahia?

R - A Arqueologia proporciona um olhar especifico sobre o espaço socialmente construído, isto é, aquele que foi antropizado, ou melhor ainda, culturalizado. Aqui fica incluído desde a implantação de um núcleo urbano até a transformação da paisagem natural, ainda que não haja locais de residências. Disto se deduz que a proposta da arqueologia é, de fato, tomar como objeto de investigação a materialidade das ações humanas. Mas, se o objeto de pesquisa é o material o objetivo é alcançar os conteúdos significativos que essa materialidade comporta para os grupos humanos. É neste sentido que, sob a ótica arqueológica, a Bahia, seja a cidade, seja o estado, pode ser estudada em sua complexidade histórico-social.

No que se refere à cidade de Salvador, assim como toda outra cidade, ela apresenta um quadro variado de situações arqueológicas, resultado das seqüências das ocupações, que conformam um acúmulo lógico e conseqüente de "tempos" e "espaços" circunscritos. Por sua vez, esses tempos e espaços foram e são vivenciados de forma diferenciada por grupos geracionais e culturais distintos. A diferença manifesta-se através de equipamentos tecnológicos e ideológicos variados, que, por vezes, podem ser até francamente opostos. Fisicamente, a seqüência de ocupações numa cidade pode ser verificada através de uma sucessão de camadas com vestígios diversos, ou então, pela superposição de estruturas construídas.

P - Poderia nos dar algum exemplo

R - Há um número grande de exemplos bem evidentes. Vejamos, apenas, o caso de antigas estruturas murarias formando parte de outras mais novas, como os restos de muralhas da cidade, incorporadas a um casarão mais recente, no largo do Pelourinho. Podem ser encontradas também superposições de estruturas, como os vestígios do Colégio dos Jesuítas do século XVII, (pátio, galerias, cisterna, celas, arcadas) embaixo da antiga faculdade de medicina do Terreiro de Jesus, construída no final do século XIX. Outras ainda podem estar encobertas no sub-solo, como os alicerces da antiga Sé primacial do Brasil, na área em que estavam o Belvedere, um ponto de ônibus e um estacionamento.

P - Com relação à Antiga Igreja da Sé, que dados se obtiveram?

R - As escavações evidenciaram vestígios materiais que representam eloqüentemente a complexidade social da cidade, no período colonial. O espaço da antiga Sé constitui um exemplo muito claro sobre a maneira de como é refletido materialmente o processo histórico acontecido em uma cidade. Ademais, fica nele de manifesto a composição pluri-étnica (traços fenotípicos, que serão confirmados pelo DNA, adornos corporais, mutilações dentárias, etc.) e a posição social de seus habitantes. De fato, este foi um local consagrado a rituais religiosos e funerários católicos, no interior do qual eram enterrados os portugueses ou luso-descendentes, e cujo adro estava destinado a sepultamentos dos escravos ou libertos pobres, assim como de índios ou mestiços. Com relação às populações de origem africana, observa-se que mesmo enterrados em área católica, muitas elas conservavam os colares de contas, relativos a seus orixás.

Devemos mencionar também que no local foram encontrados materiais cerâmicos associados aos grupos Tupi, com datações anteriores à chegada do português, denunciando a previa ocupação indígena da área. Por último, temos que ressaltar, o volumoso conjunto de objetos ou fragmentos de objetos de caráter doméstico, dos períodos colonial e independente, que foram encontrados durante as escavações, que aludem ao modus vivendi dos moradores da cidade.

P - E o território do estado da Bahia, pode-se conhecer através da arqueologia?

R - Não só pode, quanto deve. Costumo dizer que, do ponto de vista da Arqueologia, a Bahia é um grande arquivo cujos documentos (sítios e materiais arqueológicos) devem ainda ser compulsados. Especialmente, quando se trata de populações indígenas pré-coloniais a única possibilidade de estudo é através dos restos materiais desses grupos que perduraram até nossos dias. O que tem sido trabalhado até o presente, que, devo confessar, é muito pouco em comparação à potencialidade que oferece o território, permite afirmar a existência de um contingente populacional indígena muito antigo e heterogêneo. Isto vai de encontro com a idéia generalizada de um mundo pré-colonial uniforme e estático. A Bahia era um território onde uma diversidade pluri-étnica se desenvolvia, com dinamismo diferenciado, a depender da região, do período e obviamente, do grupo.

Outro aporte significativo da arqueologia para o conhecimento dos processos sócio-históricos consiste em proporcionar informações acerca do momento do contato inter-étnico europeu-indígena. Neste sentido, até o momento o caso mais exemplar é o do Engenho de Itacimirim, em Porto Seguro. Trata-se de um sitio arqueológico datado das primeiras duas décadas de ocupação portuguesa no Brasil. Nele, os estratos de contato estavam identificados pelos numerosos fragmentos de formas cerâmicas de pão de açúcar (isto é, os próprios instrumentos de produção açucareira) e vasilhames de origem portuguesa, misturados a restos de recipientes cerâmicos para processamento de alimentos, típicos dos grupos Tupi. As datações permitiram confirmar a sincronicidade de ambos conjuntos. Associado, ainda, a este contexto, encontrou-se um belo exemplar de tembetá de quartzito esverdeado, atributo masculino por excelência nos grupos Tupi litorâneos. O sítio Engenho de Itacimirim é uma prova irrefutável da estreita relação entre índios e portugueses no primórdio da conquista e colonização desse território.

Além destes dois teríamos outros exemplos a serem apresentados, mas, em resumo, podemos dizer que, ainda que com muito esforço e incipientemente, a Arqueologia está dando sua contribuição na prática interpretativa dos processos sócio-históricos que resultaram em aquilo que hoje se constitui a Bahia.

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