P
- A Arqueologia pode dar sua contribuição para interpretar
aquilo que consideramos Bahia?
R - A Arqueologia
proporciona um olhar especifico sobre o espaço socialmente
construído, isto é, aquele que foi antropizado, ou
melhor ainda, culturalizado. Aqui fica incluído desde a implantação
de um núcleo urbano até a transformação
da paisagem natural, ainda que não haja locais de residências.
Disto se deduz que a proposta da arqueologia é, de fato,
tomar como objeto de investigação a materialidade
das ações humanas. Mas, se o objeto de pesquisa é
o material o objetivo é alcançar os conteúdos
significativos que essa materialidade comporta para os grupos humanos.
É neste sentido que, sob a ótica arqueológica,
a Bahia, seja a cidade, seja o estado, pode ser estudada em sua
complexidade histórico-social.
No que se refere
à cidade de Salvador, assim como toda outra cidade, ela apresenta
um quadro
variado de situações arqueológicas, resultado
das seqüências das ocupações, que conformam
um acúmulo lógico e conseqüente de "tempos"
e "espaços" circunscritos. Por sua vez, esses tempos
e espaços foram e são vivenciados de forma diferenciada
por grupos geracionais e culturais distintos. A diferença
manifesta-se através de equipamentos tecnológicos
e ideológicos variados, que, por vezes, podem ser até
francamente opostos. Fisicamente, a seqüência de ocupações
numa cidade pode ser verificada através de uma sucessão
de camadas com vestígios diversos, ou então, pela
superposição de estruturas construídas.
P
- Poderia nos dar algum exemplo
R - Há
um número grande de exemplos bem evidentes. Vejamos, apenas,
o caso de antigas estruturas murarias formando parte de outras mais
novas, como os restos de muralhas da cidade, incorporadas a um casarão
mais recente, no largo do Pelourinho. Podem ser encontradas também
superposições de estruturas, como os vestígios
do Colégio dos Jesuítas do século XVII, (pátio,
galerias, cisterna, celas, arcadas) embaixo da antiga faculdade
de medicina do Terreiro de Jesus, construída no final do
século XIX. Outras ainda podem estar encobertas no sub-solo,
como os alicerces da antiga Sé primacial do Brasil, na área
em que estavam o Belvedere, um ponto de ônibus e um estacionamento.
P - Com relação
à Antiga Igreja da Sé, que dados se obtiveram?
R - As escavações
evidenciaram vestígios materiais que representam eloqüentemente
a complexidade social da cidade, no período colonial. O espaço
da antiga Sé constitui um exemplo muito claro sobre a maneira
de como é refletido materialmente o processo histórico
acontecido em uma cidade. Ademais, fica nele de manifesto a composição
pluri-étnica (traços fenotípicos, que serão
confirmados pelo DNA, adornos corporais, mutilações
dentárias, etc.) e a posição social de seus
habitantes. De fato, este foi um local consagrado a rituais religiosos
e funerários católicos, no interior do qual eram enterrados
os portugueses ou luso-descendentes, e cujo adro estava destinado
a sepultamentos dos escravos ou libertos pobres, assim como de índios
ou mestiços. Com relação às populações
de origem africana, observa-se que mesmo enterrados em área
católica, muitas elas conservavam os colares de contas, relativos
a seus orixás.
Devemos mencionar
também que no local foram encontrados materiais cerâmicos
associados aos grupos Tupi, com datações anteriores
à chegada do português, denunciando a previa ocupação
indígena da área. Por último, temos que ressaltar,
o volumoso conjunto de objetos ou fragmentos de objetos de caráter
doméstico, dos períodos colonial e independente, que
foram encontrados durante as escavações, que aludem
ao modus vivendi dos moradores da cidade.
P - E o território
do estado da Bahia, pode-se conhecer através da arqueologia?
R - Não
só pode, quanto deve. Costumo dizer que, do ponto de vista
da Arqueologia, a Bahia é um grande arquivo cujos documentos
(sítios e materiais arqueológicos) devem ainda ser
compulsados. Especialmente, quando se trata de populações
indígenas pré-coloniais a única possibilidade
de estudo é através dos restos materiais desses grupos
que perduraram até nossos dias. O que tem sido trabalhado
até o presente, que, devo confessar, é muito pouco
em comparação à potencialidade que oferece
o território, permite afirmar a existência de um contingente
populacional indígena muito antigo e heterogêneo. Isto
vai de encontro com a idéia generalizada de um mundo pré-colonial
uniforme e estático. A Bahia era um território onde
uma diversidade pluri-étnica se desenvolvia, com dinamismo
diferenciado, a depender da região, do período e obviamente,
do grupo.
Outro aporte
significativo da arqueologia para o conhecimento dos processos sócio-históricos
consiste em proporcionar informações acerca do momento
do contato inter-étnico europeu-indígena. Neste sentido,
até o momento o caso mais exemplar é o do Engenho
de Itacimirim, em Porto Seguro. Trata-se de um sitio arqueológico
datado das primeiras duas décadas de ocupação
portuguesa no Brasil. Nele, os estratos de contato estavam identificados
pelos numerosos fragmentos de formas cerâmicas de pão
de açúcar (isto é, os próprios instrumentos
de produção açucareira) e vasilhames de origem
portuguesa, misturados a restos de recipientes cerâmicos para
processamento de alimentos, típicos dos grupos Tupi. As datações
permitiram confirmar a sincronicidade de ambos conjuntos. Associado,
ainda, a este contexto, encontrou-se um belo exemplar de tembetá
de quartzito esverdeado, atributo masculino por excelência
nos grupos Tupi litorâneos. O sítio Engenho de Itacimirim
é uma prova irrefutável da estreita relação
entre índios e portugueses no primórdio da conquista
e colonização desse território.
Além
destes dois teríamos outros exemplos a serem apresentados,
mas, em resumo, podemos dizer que, ainda que com muito esforço
e incipientemente, a Arqueologia está dando sua contribuição
na prática interpretativa dos processos sócio-históricos
que resultaram em aquilo que hoje se constitui a Bahia.
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