Venha ver como é que faz pra desobedecer*

 

Universal, sem para isso abdicar de suas raízes. Baiana, sem recorrer a estereótipos. E sobretudo contemporânea e urbana. Assim se pode descrever a música de Mariella Santiago. Ou como a própria cantora e compositora, num esforço máximo de síntese, define: "uma música que não separa corpo e pensamento, dança e reflexão; uma voz unindo o jazz e a música eletrônica à tradição afro-baiana". Aliados a tudo isso, aspectos que vão do figurino (de plástico transparente) às intervenções audiovisuais dos seus shows, na forma de telões onde se exibem vídeos (geralmente de autoria do amigo e artista plástico Marcondes Dourado), contribuem para salientar o caráter experimental do seu trabalho.

Tudo começou há onze anos, quando Mariella foi convidada para cantar num musical, dirigido por Aninha Franco e Paulo Dourado, em homenagem a três ídolos dos anos 70: Janis Joplin, John Lennon e Jimmy Hendrix. "Eu tinha, claro, ouvido muito Woodstock desde os 5 anos de idade, mas eu cantava, em casa, mais jazz, bossa nova... Não tinha muito aquela coisa de cantar Janis Joplin, aquela coisa rasgada. Era muito difícil para mim. Sempre ouvia muito Sarah Voughan, Ella Fitzgerald, coisas assim, cantoras mais 'sérias'". Mesmo assim, a idéia de Aninha Franco de devolver a voz negra ao corpo negro - porque Janis Joplin era uma cantora branca de voz negra - foi, para Mariella, irresistível: "eu achava isso extremamente místico, a proposta espiritual me interessava muito". E então, aos 18 anos, Mariella Santiago pisou no palco pela primeira vez.

Essa experiência lhe rendeu ainda um parceiro musical, Pascal Heranval, instrumentista francês residente na Bahia, com quem iniciou desde então estudos de jazz. Mas pouco tempo depois, a situação foi ficando insustentável. Era impossível conciliar a Faculdade de Serviço Social, na Universidade Católica do Salvador, com as aulas de inglês e alemão, o namorado músico e a própria música. "Não dava, eu cantava na sexta e tinha aula de Estatística às 7 da manhã no sábado. Ia com a mesma roupa, às vezes". Era a hora de Mariella, que de certa forma já havia sido escolhida pela música uma vez, fazer o movimento recíproco da opção. "Eu tinha que escolher, mas também não tinha condição de escolher. As coisas iam me esticando, era um horário aqui, um horário ali, mas teve uma hora que não deu. Lembro da minha última batalha pela Universidade Católica do Salvador, no pátio, saindo da biblioteca. Eu estava até fazendo uma pesquisa de Antropologia, Lévi-Strauss. Deu um pino na cabeça, às 5 da tarde, sol baixo e eu larguei todos os livros, a mochila com tudo, no pátio, e não voltei mais lá. Nem para pegar a mochila, nem para pegar os livros. Não me lembro de quem estava ali".

Feita a opção definitiva, Mariella continuou cantando jazz com Pascal e com o Grupo Garagem em circuitos alternativos, além de dar aulas de inglês e banca, para garantir uma grana extra. A partir de 1995, começou a compor, o que lhe permitia também aliar a música a outra de suas paixões, as letras. "Eu tive a sorte de trabalhar com Pascal porque eu dizia: 'só não me deixe muito livre, me encomende, peça uma poesia para falar de...'(risos). Ele é experimental, mas não é um artista que precise de muito tempo para saber a forma do que ele quer, e isso eu adquiri muito com ele, porque antes eu escutava de tudo mas ficava meio perdida. E eu sinto essa dificuldade dos artistas da música brasileira, até de quem quer fazer uma coisa legal, não só comercial, de estar às vezes meio perdido". De fato, Mariella não está perdida. Tem muita certeza do que quer fazer com a sua música, ainda que não possa enquadrá-la em rótulos e conceitos muito definidos - talvez por isso mesmo.

Essa certeza transparece na disposição para enfrentar as dificuldades e preconceitos (ora contra a música eletrônica, ora contra a percussiva) e na segurança com que defende as suas escolhas, entre elas o jazz: "Por que o jazz? O jazz é uma verdadeira bênção. Vai ser muito difícil me separar do jazz. É estrangeirismo? Não. É uma música que dá liberdade de improvisação e dá para trabalhar bastante, tocar mais. Tem muito trânsito, de uma maneira também menos sacrificiosa, porque o público é mais flexível. Você tem menos pessoas que te conhecem, mas em compensação dá para fazer mais música". Ao mesmo tempo, Mariella sempre pensa a sua música associada à Bahia, numa identidade que não tem que ser óbvia, consumível, classificável, igual. "Desde criança eu tenho uma discoteca enorme em casa, muita coisa de jazz, muita coisa de música latina, cubana, brasileira, porque meu pai é músico e compositor, mas no momento em que você vai fazer a síntese, como intérprete e compositora, você faz a síntese com a sua vivência também. É impossível se isolar desse espaço onde você mora, das coisas que você viveu, dos lugares por onde você passa, do movimento do lugar que você habita. Primeiro eu me apercebi disso e depois comecei a cultivar uma maneira de fazer esse link entre a minha vivência, o calor do lugar em que eu moro e as coisas que eu escuto no mundo inteiro e que escutava desde o início".

Ao longo de 11 anos, sua trajetória inclui apresentações nos mais diversos palcos de Salvador, na Purdue Jazz Orquestra em Indiana (EUA), no Teatro do Itaú Cultural (São Paulo) e participação no projeto virtopera (www.virtopera.com.br), um "evento musical composto para a internet", do maestro Eberhard Shoener, da ópera de Munique, com o qual apresentou a short opera Beleza Negra, em Salvador, no Teatro XVIII, e em Colônia, na Alemanha. Fazem parte de sua banda seus irmãos Gilberto Santiago (bateria/percussões) e Ângelo Santiago (contrabaixo), além de Maurício Lourenço (violões, guitarra, teclados) e Enéas Moraes (bateria/percussões). Como vocalista, trabalhou com Galvão, dos Novos Baianos, com Gilberto Gil, no Carnaval da Tropicália, e com Carlinhos Brown, na turnê brasileira de "Alfagamabetizado". Em 2001, Mariella foi um dos 78 nomes selecionados entre os 1.712 inscritos no projeto Rumos Itaú Cultural Música, que pretendeu mapear a atual produção cultural brasileira. No cd gravado em função desse projeto, estão as músicas "Água" e "É bom mudar", ambas de autoria de Mariella e Pascal.

O ano de 2001 também lhe reservou o Prêmio Copene, através do qual estará finalmente gravando o seu primeiro cd, "Oseujádá". "Soa como iorubá, como uma palavra nova". Difícil mesmo foi selecionar o repertório, depois de tanto tempo sem gravar, e tanto a dizer. "Eu e Pascal queríamos fazer um disco duplo, porque o meu interesse é que esse disco chegue às mãos de quem tem que chegar e não vou me preocupar muito com distribuição. Se tiver uma gravadora que quiser distribuir, ótimo. No caso, a gravadora compra e reproduz, só faz pegar uma cópia do trabalho que já está pronto, capa, tudo. Já entrego a eles e é uma relação mais interessante". Por enquanto, as contingências financeiras impedem esse projeto, no que diz respeito ao número de músicas, mas algumas gravadoras já demonstraram interesse no trabalho, como a Eldorado e a Trama. "O cd tem orçamento limitado. Eu adoraria gravar Johnny was, que é linda e eu venho trabalhando há anos, mas é uma música de Bob Marley. Existem problemas de liberação". Todas as músicas do cd são de autoria própria, com exceção de "Eu sou negão", de Gerônimo, e "Oiáki", de Messias Santiago, pai da cantora.

O caráter independente de sua música está em sintonia com a independência de Chico Science: "Para mim, o hiato entre Chico Science e hoje ainda é muito pesaroso. É tão precioso o que ele fez pela música brasileira. E a música comercial, as gravadoras, foram tão veementes em fazer vista grossa para isso, que o trabalho dele realmente sobreviveu pelo talento, pela força que tem e pela força que tem fora do Brasil. Ele é pioneiro não só musicalmente, mas também nos procedimentos de trabalho, na coisa do artista produtor, do artista que batalha e vence fazendo tudo". Em contraposição a uma música brasileira que percebe como respeitadora aos costumes, às correntes, à tendência de agradar o público, "não por dinheiro, mas por falta de acreditar numa coisa contra o que é estabelecido e institucionalizado", Mariella Santiago oferece uma visão desobediente, ou ao menos, obediente apenas ao que quer e acredita, compondo, em suas próprias palavras, "trilhas para pequenas guerras do cotidiano, da gente consigo mesmo e da gente com o mundo; louvações e lamentos feitos de eletricidade e poesia".


* Verso da música "Oseujádá", que dá nome ao cd a ser lançado em dezembro de 2001.

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