Qual a sua
visão sobre o conceito de identidade cultural e, particularmente,
de uma possível identidade cultural baiana?
Eu trabalho
na área de Artes Cênicas, mais especificamente em Teatro,
mas me interessam muito as matrizes culturais que dão perfil
e contorno à cultura baiana de um modo geral, e como o Teatro
e as Artes Cênicas se inserem nesse contexto. Nos últimos
anos, estou trabalhando com uma rede de pesquisadores na Bahia,
no Brasil, na França, nos Estados Unidos e em outros países
também, em torno de uma idéia que nós chamamos
de etnocenologia, que é a etnociência do espetáculo,
na mesma medida em que foram propostas a etnomusicologia, etnolingüística,
etnobotânica, etnomatemática. A idéia é
de superar o preconceito etnocentrista e valorizar a diversidade
espetacular das diversas culturas. No caso da Bahia, tenho um projeto
de pesquisa que venho desenvolvendo há alguns anos e gerou
uma publicação chamada "Matrizes estéticas:
o espetáculo da baianidade" (encontrada em Temas em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, livro organizado
pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas
da UFBA). Grosso modo, correndo o risco de ser superficial e rude,
o que a gente identifica é uma multiplicidade de matrizes
estéticas na Bahia, distribuídas de forma diferenciada
entre Salvador, o Recôncavo, o litoral sul e norte, a Chapada
Diamantina, o sertão, enfim, as várias regiões
geoculturais que compõem a Bahia. Mais especificamente, tenho
me concentrado no estudo da baianidade de Salvador e do Recôncavo,
ou seja, da Baía de Todos os Santos. Essas matrizes são
evidentemente a nativa, que é múltipla, porque não
é apenas tupiniquim ou tupinambá, é evidentemente
européia, mais especificamente ibérica, mais particularmente
portuguesa, mas com marcas importantes da cultura espanhola, das
culturas latinas européias, da cultura em geral da Europa
Ocidental. Do mesmo modo, as culturas africanas, que são
múltiplas e que chegaram em levas sucessivas ou simultâneas.
Essas culturas se misturam numa cidade que, durante quase dois séculos,
foi a maior cidade européia fora da Europa, a maior cidade
africana fora da África, e um ponto de circulação
importante de informações vindas do Oriente, seja
do Japão, da China, da Índia ou das Ilhas do Pacífico,
da África como um todo, do Caribe e da Europa. A Bahia é
um ponto de referência do comércio internacional há
muitos séculos. Essa situação fez com que essas
matrizes tradicionais se misturassem e continuassem a receber aportes
novos durante muito tempo, o que fez com que esta se tornasse uma
cidade aberta. É uma cidade que tem um nome feminino, que
se remete a um acidente geográfico aberto, de entrada, uma
baía, de todos os santos, o que já assegura uma certa
pluralidade, e que se acostuma a absorver informação
nova, a processar e a criar novidade. Assim, afirma sua perspectiva
histórica de porto comercial, onde o mais importante, eu
diria, não é a moral ou a ética no sentido
estrito. Aquilo que dá cimento, que dá ligação
comunitária, é o estético, o que se sente e
o que se considera como belo.
É uma
cultura auto referenciada, mas que absorve influências externas
e diz isso. O trio elétrico, por exemplo, todo mundo sabe
que apareceu porque um dia passaram aqui as vassourinhas, um bloco
carnavalesco pernambucano. A gente gosta de criar novidade, de absorver
novidade e depois jogar isso no comércio, e vive um movimento
permanente de transformação cultural, que cada vez
mais ratifica a tradição. E que tradição
é essa? È aquela da abertura comercial e da incorporação
das novidades e da criação de novas novidades.
Qual seria
a importância dessa discussão para o fazer artístico
e para a sociedade, na Bahia?
Para o fazer
artístico, eu diria que seria uma atualização,
uma retomada da linha evolutiva, no sentido de valorizar e difundir
essa diversidade. Hoje, há grupos na Bahia que têm
como temática a negritude, por exemplo, ou as culturas nativas.
Claro que havia rituais representativos nas culturas nativas, nas
culturas africanas, mas o teatro é uma matriz européia,
sem dúvida alguma. O fato é que a gente tem práticas
espetaculares que não se restringem ao teatro. Eu acho que
as procissões, os rituais afro-brasileiros têm um componente
espetacular muito grande. Então, para a criação
artística, a compreensão dessa diversidade e dessa
dinâmica fazem com que a produção artística
se diversifique, se inter-relacione, criando o que eu chamo de sistema
espetacular, que vai desde o teatro à dança, ao esporte,
à moda, ao carnaval. É um sistema na verdade único,
complexo, mas inter-relacionável. Para a sociedade, os estudos
mais recentes dos organismos internacionais apontam que está
na cultura, no lazer e no turismo o futuro de criação
de renda e emprego. Então, a minha expectativa, a minha esperança,
é que essa dinâmica cultural venha a reduzir as desigualdades
sociais, que são absurdas no caso da Bahia, do Nordeste e
do Brasil, gerando renda e empregos. O meu discurso, evidentemente,
tem um tom mais otimista do que o de muitos de meus colegas, que
lamentam a degradação, a vulgarização,
a banalização da cultura. E isso compreendendo que
eu não posso separar a arte, a universidade, da sociedade;
eu não posso separar a cultura do lazer, do entretenimento,
até mesmo do turismo. O conceito contemporâneo de aglomerado
ou de sistema faz com a gente compreenda que as coisas todas se
tocam, todas dependem umas das outras, e que o valor maior, no meu
ponto de vista, é justamente a diversidade, o espaço
plural, para todas as manifestações espetaculares,
desde as de cunho mais religioso, político ou estritamente
artístico.
Mas o que
está em evidência na cultura baiana não é
muito homogêneo, considerando que a Bahia é um espaço
tão múltiplo?
Não,
eu não acho que ele é muito homogêneo Acho que
ele é muito dinâmico e que tem modas dominantes temporariamente,
mas elas se alternam e há nichos de mercado, para usar uma
expressão da área, que sempre reservam um espaço
importante para, por exemplo, um programa como o Bahia Singular
e Plural, da maior importância, que o IRDEB vem fazendo, no
sentido de registrar e divulgar folguedos e práticas espetaculares
que não estão na dominante do mercado. Não
estão, mas estão no Aeroclube Plaza, estão
no IRDEB, têm gerado comerciais para a televisão, eventos
de toda sorte, aumentando a auto-estima e reafirmando certas matrizes
que não são dominantes no mercado. Sim, mas nem tudo
será dominante, e nada será dominante sempre. A gente
tem que ouvir o que está sendo vendido, aprender com isso,
inclusive não ter vergonha de achar a qualidade musical,
artística e espetacular de todos esses segmentos, dominantes
ou não. O mercado é dinâmico, e as instituições
têm seu papel a cumprir. Eu acho que é possível
haver formas de regulações de mercado. Eu não
saberia o que propor. Tenho a propor no sentido de tentar entender
o que é que acontece e, no caso do teatro e da dança,
gerar pesquisas sistemáticas, com produção
teórica, bibliográfica, artística e técnica
sobre o que a gente estuda e o que a gente encontra.
Que indicações
você faria de manifestações culturais e artísticas
baianas representativas?
Eu falei do
Bahia Singular e Plural, que tem levantado um acervo muito grande.
Tem as procissões religiosas e as festas religiosas mistas
ou não, sincréticas ou não, católicas,
afro-baianas, e mesmo as evangélicas, que têm um componente
espetacular muito grande. Tem o esporte... Foi muito interessante
ver Popó brincando com Ivete Sangalo em cima de um trio elétrico.
No Arerê Geral, um programa da TV Bahia, você vê
uma modelo e um ator apresentando artistas de todo tipo. Tem dois
espetáculos da Escola de Teatro, "Umbigüidades",
de Iami Rebouças, e "Insônia", de Hebe Alves.
A produção da escola é muito representativa
e reveladora da baianidade. Essa é uma hipótese que
a gente vem verificando, porque houve muita crítica historicamente
de um distanciamento da escola da cultura baiana. Fora da escola,
eu vejo alguns núcleos importantes, como o Bando de Teatro
Olodum, que faz um trabalho da maior importância, de recriação
da matriz afro-baiana. Tem uma companhia em Lauro de Freitas, chamada
Companhia Tupã de Teatro, salvo engano, que trabalha mais
especificamente com as matrizes nativas, um trabalho de Luís
Laranjeiras. Carlos Petrovitch fez um ópera recentemente,
"O menino que queria ser rei", com lenda de origem afro-baiana.
E tem o Malê de Balê, que é motivo de pesquisa
de doutorado no nosso programa.
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