Qual o panorama
da produção artística na Bahia de hoje?
A Bahia, a
partir dos anos 70, começou a experimentar um processo que
vai estar presente no Brasil como um todo (a Bahia sempre um pouquinho
depois): a afirmação de uma nova lógica, fundada
na lógica de indústria cultural, que vai substituir,
em larga medida, o que se tinha até então uma
lógica de cultura fundada na escola, na academia, em circuitos
mais sofisticados e pouco ampliados.
Os anos 70
marcam essa mudança que só se consolida efetivamente
com o carnaval nos anos 80. E isso é que vai dar o tom. Quem
dá o tom na produção cultural na Bahia é
efetivamente a lógica de mercado. Não que não
existam outras lógicas. Mas quem consegue reproduzir, amplificar
e massificar efetivamente as dinâmicas culturais são
os mecanismos que passam pelo âmbito do mercado. Então,
o que é que está faltando diante disso? O que é
possível fazer? Vociferar contra o mercado é uma bobagem:
ele alcançou hoje todas as dimensões da vida em sociedade.
No plano da religião, da ecologia, do espírito, da
cultura...
Você
acha que o mercado chega até alguns "locais de cultura
recônditos", com a arte mortuária, por exemplo?
Acho que sim,
que ele tem sempre alguma coisa a dizer. A Bahia é o único
lugar onde uma casa funerária se chama A Decorativa. Bom,
os tentáculos do mercado, como eu ia dizendo, são
muito fortes. Como é que eu vou olhar para isso? Temos que
produzir aquilo que o mercado não produz, que é política
cultural e debate cultural. São políticas culturais
públicas, fundamentalmente públicas, mas também
privadas, que vão fazer aquilo que o mercado não consegue
fazer, que é ampliar os circuitos culturais, incluir aqueles
que não têm mercadoria para vender, mas que têm
produção a apresentar. O Teatro Experimental não
tem mercadoria para vender, porque ninguém compra aquilo.
Mas ele tem uma produção para apresentar. E a sociedade
precisa daquilo? Precisa. As celebrações no plano
da morte... embora o mercado venda o caixão, a tumba, o sepulcro,
aquilo não tem uma presença no tecido social? Então,
ela precisa ser resguardada, cuidada. Não preservada em formol,
porque algumas morrem mesmo. Mas você tem que criar um espaço
que o mercado não cria.
Ao invés
de as pessoas ficarem criticando pura e simplesmente o mercado,
devem primeiro pensar em regular esse mercado e produzir determinadas
dinâmicas que não fazem parte dele. Políticas
públicas na área de cultura, para garantir as manifestações,
o direito de acesso, o direito de criação não
é que todo mundo seja artista, mas todo mundo tem o direito
de ter condições para viabilizar a sua criação,
a sua produção, coisa que o mercado não permite.
Um passo
importante desse processo não seria a própria sociedade
reconhecer a diferença, ou seja, reconhecer o valor daquele
outro que às vezes lhe é estranho?
O mercado só
se interessa pela diferença na medida em que essa diferença
possa se transformar num diferencial de mercado. Mas ele não
acolhe a diferença no sentido de compreender a necessidade
dela, porque o mercado é um espaço de desigualdade.
A primeira coisa que ele faz com a diferença é transformá-la
em desigualdade. E isso é ruim. Então, acolher essa
diferença sem produzir desigualdade cabe ao Estado e à
sociedade civil, através de suas instituições
que, às vezes, são empresas mesmo, como a Copene,
que vai produzir uma política privada da cultura. Mas são
lógicas que têm que caminhar ao lado da lógica
maior, que prevalece hoje: a lógica de mercado.
É fundamental
a existência de políticas públicas na área
de cultura e também na área de comunicação,
para romper os monopólios. Afinal, da mesma maneira que a
política cultural rompe o monopólio do mercado em
relação ao que é fazer cultura, a política
de comunicação rompe o monopólio de mercado
ou pretende fazê-lo daquilo que é fundamental
para a sociedade: ouvir, falar...
Hoje, na Bahia,
nós vivemos uma situação perigosa: o mercado
da produção cultural está monopolizado pelo
grupo político que hoje controla a área de comunicação.
Ele controla a área de comunicação e a área
de cultura. Se você olhar o último verão, os
principais fatos artístico-culturais da cidade, no âmbito
do mercado e até fora dele , foram controlados
por essa pessoas, pelo grupo da TV Bahia. E eu não estou
discutindo aqui nem competências, eles até têm
competência em fazer coisas novas: o Rádio Bazar é
uma excelente idéia, o Solaris é uma excelente idéia,
o Projeto Pôr do Sol, o Festival de Verão... Não
há crítica a isso do ponto de vista da competência,
mas há do ponto de vista da diversidade. Esse mercado é
extremamente perverso com tudo aquilo que não pode ser rapidamente
transformado em mercadoria, não dá margem a que determinadas
coisas possam se concretizar. Mas sempre a culpa maior é
de quem deveria regulamentar o mercado e contrabalançá-lo
em termos de políticas culturais.
É
possível regular o mercado?
Claro que é.
Você regula o mercado financeiro, o mercado de trabalho, por
que não é possível regular o mercado do carnaval,
por exemplo? Por que não pode regular o mercado da cultura?
Acho que pode. Por que você não pode produzir mecanismos
mais transparentes de financiamento? Temos o Faz Cultura, que tem
um papel importante, mas é preciso transparência nesse
processo, saber exatamente como é que esses circuitos estão.
É preciso ouvir a classe artístico-cultural da cidade:
quais são as suas demandas, suas opiniões, críticas...
incorporar esse processo. Não pode ser imaginando que o Faz
Cultura é uma dádiva do Estado, porque é um
dinheiro meu, eu paguei imposto e esse imposto vai ser utilizado
para várias coisas, entre elas isenção fiscal
de empresas. Esse jogo aí não é um jogo que
corra independentemente da minha participação como
cidadão. Pelo menos eu financio esse processo. É preciso
democracia nisso. Transparência, democracia e garantir a participação
da sociedade civil. É importante as pessoas produzirem isso
e ampliarem o que falta hoje na Bahia, que é o debate cultural.
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