"Eu estou falando de uma refundação da modernidade, levando em consideração as tradições culturais..." "Os modos de reelaboração dessas tradições são infinitamente variados. Depende muito da linguagem com que se trabalha. Uma vertente, historicamente comprovada, é representada pela elite branca, que tem vergonha de ser miscigenada cultural e racialmente e quer a todo custo ser ocidental."

 
 
 

 

 

 

Prof. Dr. Renato da Silveira
Faculdade de Comunicação da UFBA



É possível falar de identidade cultural?

A primeira coisa que me ocorre é o seguinte: nesse processo de globalização, muitos novos fatores começam a concorrer para uma perda de identidade. Por exemplo, eu tenho aqui um canal a cabo e não vejo mais TV local. Então, quando meus amigos publicitários comentam sobre anúncios referentes à vida comercial baiana, eu não estou sabendo, porque eu pego a Band de S. Paulo, a Globo do Rio e outros canais do mundo todo. Afora outros fatores como o que chega pelas redes de computadores, pela facilidade de acesso a publicações do mundo todo. Enfim, há uma forte conexão internacional hoje, que enfraquece seus vínculos locais.

Eu situo Salvador entre as metrópoles secundárias. Que tem uma boa chance, dentro dessa descaracterização generalizada, promovida pela globalização, de refundar as suas tradições culturais dentro dessa modernidade. Tipo o fenômeno que começou a ser colocado na década de 70, quando surgiu um fenômeno muito interessante na Europa: a projeção de cidades secundárias, que passaram a ter um certo destaque na vida cultural, justamente devido às suas raízes culturais fortes. Barcelona, na Espanha é um exemplo. Tem outras cidades francesas da região da antiga Bretanha.

Então, não estou falando de todo mundo recuar para os terreiros de candomblé e todo mundo entrar num grupo de maculelê... Eu estou falando de uma refundação da modernidade, mas fortemente, levando em consideração essas tradições culturais.

Por outro lado, vejo aqui uma política burra de todos os poderes políticos que têm se sucedido. Na verdade, há muito mais uma folclorização da cultura, ou uma instrumentalização da cultura tradicional para efeito de prestação de serviços exóticos ao turismo internacional. Esse é o quadro preponderante que eu vejo.

O senhor poderia falar um pouco mais das manifestações culturais que não estão na mídia, mas que sabemos que existem?

Pois é. Aí é que está a raiz. E quais seriam elas? Em primeiro lugar, o candomblé. Essa é a raiz fortíssima. Você tem uma quantidade muito grande de terreiros que não entraram no ôba ôba midiático, nem passarão a fazer moda... temas de conversa de salão de damas burguesas, nem mesmo freqüentado por essa classe mais rica, mas que mantêm tradições muito fortes, não só em Salvador, mas no recôncavo também. Então você tem uma dinâmica própria. É outro tipo de internacionalização, essa de pessoas que estão voltadas para a sua própria raiz. Essas pessoas estão voltadas para a África. Junto disso, você tem o lado meio nordestino também. O recôncavo pega um pouco do influxo do nordeste. Um exemplo é a música que explode nos bairros populares... O pagode, antes de explodir como um negócio lucrativo com produções modernas e gestão empresarial, era um fenômeno de final de semana nos bairros populares, com uma quantidade muito grande de músicos amadores... Ninguém sabe dizer o que está acontecendo por aí nos bairros populares... O que vai surgir ninguém sabe direito. Qual é o peso que um movimento como o Hip-hop, que tem uma dinâmica muito forte, vai ter nos próximos anos? O que é possível dizer é que é um fenômeno importante, mobilizador, atinge uma parte da juventude antenada dos bairros populares e tem uma preocupação de vínculos com o seu passado afro – o hip-hop daqui da Bahia. Particularmente, acho que isso tende a crescer. No Brasil, podemos ver um renascimento da manifestação popular. Os truques da elite já foram desmascarados. Nos filmes de Hollywood ou nas novelas da Globo, fala-se da corrupção na elite. Do enriquecimento com base na fraude, na trapaça. Veja o caso Lalau. Sabemos que o país é desigual, e que essa igualdade só pode ser conquistada na luta. Então a gente vê que essa região (Salvador e Recôncavo) é um lugar onde pulsam manifestações populares muito fortes. As festas populares, festas de largo como a de Iemanjá ou do Bonfim ainda conseguem acontecer com uma participação popular autêntica. Eu acredito que seja difícil destruir isso, embora a postura da prefeitura, nos últimos anos, seja a pior possível. A criatividade popular é abafada. É a cultura da padronização registrada como higiene, limpeza. É o caso da substituição das barracas nas festas de largo. Agora, fica parecendo um acampamento militar. Então, resumindo, acho que a raiz mesma está fora da mídia. O que chega na mídia é o que está bastante batido, bastante conhecido, é o que virou notícia de massa. Nós não temos uma mídia local com a força suficiente para procurar o que tem de característico, espontâneo, não ainda deturpado.

Como criador, artista, vale discutir identidade cultural?

Claro que vale. Temos já algumas gerações de modernistas com influência afro-baiana. Tivemos o Souza Carneiro, que foi o primeiro romancista a escrever tendo negros como protagonistas. Até então, as elites baianas eram muito ocidentalizadas até o século XVIII. Há depoimentos de intelectuais locais que eram contestadores, poetas que criticavam a elite local, mas que esculhambavam com a cultura negra. Ela entrava no registro do charlatanismo, da superstição. Eles olhavam para as manifestações culturais com a cabeça de brancos ocidentais, embora fossem mestiços. No início do século é que começa a haver essa consciência. Tem também o Xavier Marques, que, ainda com escorregadelas racistas, começa a olhar com simpatia a cultura negra, no romance O Feiticeiro. Depois vem Jorge Amado e toda uma geração de literatos que começa a fazer a modernidade tropical, na esteira dos modernistas paulistas. Depois você tem a geração que criou a arte-moderna baiana, em termos de artes-plásticas, que é Rubem Valentim, Mário Cravo, Carybé, que também sofre forte influência da cultura negra. Eu devo estar na quinta geração. A tentativa sempre foi a de fazer um trabalho que não fosse folclórico. Com a plasticidade influenciada pela correntes que fundaram o modernismo em todo o mundo, ao mesmo tempo muito fortemente ligado às nossas raízes. Aí eu estou vendo a moçada do hip-hop, que é depois de mim, como a segunda geração. Estamos completando quase dez gerações de artistas que, para encontrarem uma originalidade, uma forma de expressão artística moderna que não seja uma pura repetição do que se está fazendo no hemisfério norte, encaram suas raízes culturais e as raízes negras em primeiro lugar. Em termos artísticos, é uma questão de sobrevivência cultural.

Há vetores temáticos que identificam essas manifestações artísticas modernas, mas ao mesmo tempo enraizadas?

Diria que há vertentes. Os modos de reelaboração dessas tradições são infinitamente variados. Depende muito da linguagem com que se trabalha. Uma vertente, historicamente comprovada, é representada pela elite branca, que tem vergonha de ser miscigenada cultural e racialmente e quer a todo custo ser ocidental. No final do século XVIII, até 1850 negros foram expulsos da Barroquinha por Francisco Gonçalves Martins, um governador da extrema direita baiana na época. É o período em que chega a "modernidade" à Bahia. Parece significar expulsar o negro da paisagem. Existiu limpeza étnica aqui na Bahia. Outra é a da elite que já admite. Politicamente, talvez a figura mais destacada seja ACM, que usa essa tradição em benefício próprio, para se promover como político popular. Esse é um aspecto importante do populismo baiano. E ainda tem outra que são os artistas vivendo crises existenciais de identidade, de criatividade e que procuram, desesperadamente, enriquecer suas problemáticas lançando mão do poderoso imaginário afro-baiano. Eu me coloco nessa vertente. Há um vetor temático poderoso: os orixás. Veja Carybé, Juarez Paraíso, Paulo Rufino... E ainda tem a exploração barata, comercial, feita para o turismo que eu também não condeno, porque quando o tema é forte, ele se manifesta de diversas maneiras.

Que aspectos, autores ou grupos são referenciais nessas questões, deveriam estar presentes na programação da SBPC?

Dois enfoques: em primeiro lugar, manifestações culturais que estejam dentro de instituições oficiais como museus. E o outro um enfoque alternativo, poderíamos chamar de espontâneo. Que surge nos bairros ou em ONGs como o CRIA (Centro de Referência Integral de Adolescentes) ou a Cipó, que eu conheço de perto. Trabalham com adolescentes de bairros populares. Me chamam a atenção porque abrem espaços para esses meninos trazerem seus próprios conteúdos, pensarem com a própria cabeça. Isso eu não chamaria de institucional. Pra mim, seria institucional o trabalho de pessoas já reconhecidas socialmente, com larga experiência técnica ... Talvez esses sejam os dois grandes registros.

 

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