É possível
falar de identidade cultural?
A primeira
coisa que me ocorre é o seguinte: nesse processo de globalização,
muitos novos fatores começam a concorrer para uma perda de
identidade. Por exemplo, eu tenho aqui um canal a cabo e não
vejo mais TV local. Então, quando meus amigos publicitários
comentam sobre anúncios referentes à vida comercial
baiana, eu não estou sabendo, porque eu pego a Band de S.
Paulo, a Globo do Rio e outros canais do mundo todo. Afora outros
fatores como o que chega pelas redes de computadores, pela facilidade
de acesso a publicações do mundo todo. Enfim, há
uma forte conexão internacional hoje, que enfraquece seus
vínculos locais.
Eu situo Salvador
entre as metrópoles secundárias. Que tem uma boa chance,
dentro dessa descaracterização generalizada, promovida
pela globalização, de refundar as suas tradições
culturais dentro dessa modernidade. Tipo o fenômeno que começou
a ser colocado na década de 70, quando surgiu um fenômeno
muito interessante na Europa: a projeção de cidades
secundárias, que passaram a ter um certo destaque na vida
cultural, justamente devido às suas raízes culturais
fortes. Barcelona, na Espanha é um exemplo. Tem outras cidades
francesas da região da antiga Bretanha.
Então,
não estou falando de todo mundo recuar para os terreiros
de candomblé e todo mundo entrar num grupo de maculelê...
Eu estou falando de uma refundação da modernidade,
mas fortemente, levando em consideração essas tradições
culturais.
Por outro lado,
vejo aqui uma política burra de todos os poderes políticos
que têm se sucedido. Na verdade, há muito mais uma
folclorização da cultura, ou uma instrumentalização
da cultura tradicional para efeito de prestação de
serviços exóticos ao turismo internacional. Esse é
o quadro preponderante que eu vejo.
O senhor
poderia falar um pouco mais das manifestações culturais
que não estão na mídia, mas que sabemos que
existem?
Pois é.
Aí é que está a raiz. E quais seriam elas?
Em primeiro lugar, o candomblé. Essa é a raiz fortíssima.
Você tem uma quantidade muito grande de terreiros que não
entraram no ôba ôba midiático, nem passarão
a fazer moda... temas de conversa de salão de damas burguesas,
nem mesmo freqüentado por essa classe mais rica, mas que mantêm
tradições muito fortes, não só em Salvador,
mas no recôncavo também. Então você tem
uma dinâmica própria. É outro tipo de internacionalização,
essa de pessoas que estão voltadas para a sua própria
raiz. Essas pessoas estão voltadas para a África.
Junto disso, você tem o lado meio nordestino também.
O recôncavo pega um pouco do influxo do nordeste. Um exemplo
é a música que explode nos bairros populares... O
pagode, antes de explodir como um negócio lucrativo com produções
modernas e gestão empresarial, era um fenômeno de final
de semana nos bairros populares, com uma quantidade muito grande
de músicos amadores... Ninguém sabe dizer o que está
acontecendo por aí nos bairros populares... O que vai surgir
ninguém sabe direito. Qual é o peso que um movimento
como o Hip-hop, que tem uma dinâmica muito forte, vai ter
nos próximos anos? O que é possível dizer é
que é um fenômeno importante, mobilizador, atinge uma
parte da juventude antenada dos bairros populares e tem uma preocupação
de vínculos com o seu passado afro o hip-hop daqui
da Bahia. Particularmente, acho que isso tende a crescer. No Brasil,
podemos ver um renascimento da manifestação popular.
Os truques da elite já foram desmascarados. Nos filmes de
Hollywood ou nas novelas da Globo, fala-se da corrupção
na elite. Do enriquecimento com base na fraude, na trapaça.
Veja o caso Lalau. Sabemos que o país é desigual,
e que essa igualdade só pode ser conquistada na luta. Então
a gente vê que essa região (Salvador e Recôncavo)
é um lugar onde pulsam manifestações populares
muito fortes. As festas populares, festas de largo como a de Iemanjá
ou do Bonfim ainda conseguem acontecer com uma participação
popular autêntica. Eu acredito que seja difícil destruir
isso, embora a postura da prefeitura, nos últimos anos, seja
a pior possível. A criatividade popular é abafada.
É a cultura da padronização registrada como
higiene, limpeza. É o caso da substituição
das barracas nas festas de largo. Agora, fica parecendo um acampamento
militar. Então, resumindo, acho que a raiz mesma está
fora da mídia. O que chega na mídia é o que
está bastante batido, bastante conhecido, é o que
virou notícia de massa. Nós não temos uma mídia
local com a força suficiente para procurar o que tem de característico,
espontâneo, não ainda deturpado.
Como criador,
artista, vale discutir identidade cultural?
Claro que vale.
Temos já algumas gerações de modernistas com
influência afro-baiana. Tivemos o Souza Carneiro, que foi
o primeiro romancista a escrever tendo negros como protagonistas.
Até então, as elites baianas eram muito ocidentalizadas
até o século XVIII. Há depoimentos de intelectuais
locais que eram contestadores, poetas que criticavam a elite local,
mas que esculhambavam com a cultura negra. Ela entrava no registro
do charlatanismo, da superstição. Eles olhavam para
as manifestações culturais com a cabeça de
brancos ocidentais, embora fossem mestiços. No início
do século é que começa a haver essa consciência.
Tem também o Xavier Marques, que, ainda com escorregadelas
racistas, começa a olhar com simpatia a cultura negra, no
romance O Feiticeiro. Depois vem Jorge Amado e toda uma geração
de literatos que começa a fazer a modernidade tropical, na
esteira dos modernistas paulistas. Depois você tem a geração
que criou a arte-moderna baiana, em termos de artes-plásticas,
que é Rubem Valentim, Mário Cravo, Carybé,
que também sofre forte influência da cultura negra.
Eu devo estar na quinta geração. A tentativa sempre
foi a de fazer um trabalho que não fosse folclórico.
Com a plasticidade influenciada pela correntes que fundaram o modernismo
em todo o mundo, ao mesmo tempo muito fortemente ligado às
nossas raízes. Aí eu estou vendo a moçada do
hip-hop, que é depois de mim, como a segunda geração.
Estamos completando quase dez gerações de artistas
que, para encontrarem uma originalidade, uma forma de expressão
artística moderna que não seja uma pura repetição
do que se está fazendo no hemisfério norte, encaram
suas raízes culturais e as raízes negras em primeiro
lugar. Em termos artísticos, é uma questão
de sobrevivência cultural.
Há
vetores temáticos que identificam essas manifestações
artísticas modernas, mas ao mesmo tempo enraizadas?
Diria que há
vertentes. Os modos de reelaboração dessas tradições
são infinitamente variados. Depende muito da linguagem com
que se trabalha. Uma vertente, historicamente comprovada, é
representada pela elite branca, que tem vergonha de ser miscigenada
cultural e racialmente e quer a todo custo ser ocidental. No final
do século XVIII, até 1850 negros foram expulsos da
Barroquinha por Francisco Gonçalves Martins, um governador
da extrema direita baiana na época. É o período
em que chega a "modernidade" à Bahia. Parece significar
expulsar o negro da paisagem. Existiu limpeza étnica aqui
na Bahia. Outra é a da elite que já admite. Politicamente,
talvez a figura mais destacada seja ACM, que usa essa tradição
em benefício próprio, para se promover como político
popular. Esse é um aspecto importante do populismo baiano.
E ainda tem outra que são os artistas vivendo crises existenciais
de identidade, de criatividade e que procuram, desesperadamente,
enriquecer suas problemáticas lançando mão
do poderoso imaginário afro-baiano. Eu me coloco nessa vertente.
Há um vetor temático poderoso: os orixás. Veja
Carybé, Juarez Paraíso, Paulo Rufino... E ainda tem
a exploração barata, comercial, feita para o turismo
que eu também não condeno, porque quando o tema é
forte, ele se manifesta de diversas maneiras.
Que aspectos,
autores ou grupos são referenciais nessas questões,
deveriam estar presentes na programação da SBPC?
Dois enfoques:
em primeiro lugar, manifestações culturais que estejam
dentro de instituições oficiais como museus. E o outro
um enfoque alternativo, poderíamos chamar de espontâneo.
Que surge nos bairros ou em ONGs como o CRIA (Centro de Referência
Integral de Adolescentes) ou a Cipó, que eu conheço
de perto. Trabalham com adolescentes de bairros populares. Me chamam
a atenção porque abrem espaços para esses meninos
trazerem seus próprios conteúdos, pensarem com a própria
cabeça. Isso eu não chamaria de institucional. Pra
mim, seria institucional o trabalho de pessoas já reconhecidas
socialmente, com larga experiência técnica ... Talvez
esses sejam os dois grandes registros.
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