Como o senhor
entende a questão da identidade cultural?
Um dos problemas
que estão em pauta na etnomusicologia hoje é a construção
da identidade cultural através da música. Esse assunto
não é tão novo. Há uma corrente antropológica,
que talvez se pudesse até chamar de antropologia psicológica,
que teve uma fase muito importante durante os anos 30, numa fase
subseqüente ao impacto do funcionalismo, em que é feito
um estudo de personalidade e cultura, ou melhor, mais do impacto
da cultura na formação da personalidade do que o reverso
disso. Acredito na importância de se saber quem se é,
para onde se vai, o que é que se tem sido, e disso concluir
qualquer coisa, e, para mim, não há dúvida
nenhuma sobre o risco de uma política de cultura que não
seja de cultura, mas de indústria cultural.
Existiria, então, uma unidade ou uma identidade cultural
baiana?
Atualmente, com os meios de divulgação de massa, a
tendência tem sido de uma desterritorialização
da cultura e, subseqüentemente, uma necessidade de negociação
de significados. Você imagina o que aconteceu com o Olodum.
Aquilo é produto, é um retrato de um grupo minoritário,
com problemas, querendo estabelecer essa identidade de que a gente
está falando, então isso é produto exótico,
interessante. Produtores americanos, japoneses, tiram esse grupo
daqui, levam para o Central Park, em Nova York, para grandes gravadoras.
No momento em que isso acontece, o relacionamento desse grupo de
músicos com a comunidade que o produziu se altera completamente.
Então, ao invés de haver tantos músicos participando
da banda, essa foi reduzida de tamanho, e os ensaios, de que as
pessoas participavam livremente, começaram a ser cobrados,
os instrumentos começaram a mudar, essa coisa toda. Conseqüentemente,
essa comunidade tem que negociar esse significado para poder manter
aquilo que é seu, a sua identidade. Isso ocorre o tempo todo,
culturas musicais relativamente isoladas são atingidas por
influências urbanas ou pela indústria do disco ou do
que for. Ou seja, elas começam a se alterar totalmente. A
conseqüência da perda de identidade é um desastre.
E, no momento
atual, como fica a identidade cultural em Salvador, por exemplo?
Não
fica. Salvador está posta à venda. Eu não posso
nem falar disso, porque fui do Conselho Estadual de Cultura durante
bastante tempo e fiz uma ou duas críticas, que me parecem
sensatas, aos mecanismo de captação e aplicação
de recursos, não preocupado com as coisas que estão
sendo feitas, que são muitas, mas com as enormes ambições.
Eu me preocupo muito com essas ambições, porque são
fundamentais para essa identidade de que estou falando. O conceito
básico do Faz Cultura é - eu fico até um pouco
embaraçado de dizer isso: "cultura é um conjunto
de bens e serviços de interesse do turismo". Ponto.
Indústria cultural da pior natureza, porque isso produz empregos
e gera riqueza, e se descobriu que não sei quantos por cento
do PIB estão envolvidos em atividades culturais, e, por causa
disso, vamos maltratar a população inteira, vamos
prostituir todo mundo, vamos desrespeitar qualquer coisa porque
o resultado é dinheiro, então está certo. Qualquer
outra coisa é inoportuna, é impossível.
Como o senhor entende a questão da heterogeneidade na
cultura baiana? É diferente do Brasil ou de outros contextos,
nesse aspecto?
Eu poderia
falar sobre funções e usos de música, porque
isso também está relacionado com a identidade e responde
a essas mil caras de Salvador. A cultura à qual você
pertence seria o maior condicionador do tipo de música que
você produz. Música produz respostas físicas,
então há um determinado tipo de fazer musical que
está em todas, mas existem aquelas que fazem principalmente
isso. Outra função de música que é muito
citada é a de expressão de emoções.
Tudo bem, por que não? Mas é fundamental também
que você pense que não há música sem
conhecimento. Existe música para refletir. Qualquer grupo
humano tem conceitos daquilo que ele considera boa música.
Em função desses conceitos, estão os comportamentos,
e em função dos comportamentos, finalmente, os produtos,
as músicas. E tudo isso é um sistema dinâmico:
se os produtos não correspondem aos conceitos, ou os conceitos
mudam ou os produtos mudam. Se os comportamentos forem inadequados
aos produtos, então um muda o outro. Tudo isso está
constantemente sendo ajustado por um processo de retroalimentação,
que se poderia chamar informalmente de educação musical.
Essa educação musical não tem que ser formal,
mas está aí o tempo todo e é esse feedback
que compatibiliza o sistema inteiro. Mas o luxo, nesse país
de cartolas, que é o dos músicos, é de que
a emoção seja premiada e a reflexão seja ignorada.
No geral,
ou principalmente na Bahia?
Não,
no geral eu acho que a tendência seria essa. Muito menos,
por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, onde as pessoas são
educadas. É um absurdo o sistema educacional brasileiro ignorar
um dos sentidos fundamentais, que é o da audição.
Claro que se educa pela música, não precisa nem dizer.
E deseduca também, faz o contrário. No caso do Brasil,
existem exemplos históricos e são vários
dessa consciência da força da música,
ao ponto de terem interditado todos os batacotôs da Bahia,
que eram instrumentos dos malês ou dos iorubás, não
me lembro bem. Os atabaques de candomblé foram apreendidos
pela polícia até 1975, uma violência que não
tem tamanho, mas muito bem pensada, porque qualquer delegado de
polícia sabia que, no momento em que ele apreendesse o atabaque,
o candomblé parava. Concluindo a questão das funções
e de como elas afetam essa música, você teria uma função
de comunicação, uma outra de entretenimento, de expressão,
gosto estético, mas existem outras funções
que são mais ligadas ao reforço de autoridade, legitimação
de sistemas políticos e religiosos, contribuição
para a continuidade da cultura, contribuição para
a integração, tudo isso não exclusivo da música,
evidentemente, mas de que ela faz parte.
Eu acho que
deveria haver um planejamento cultural, com bases mais científicas,
projetos de salvaguarda de memória, de estímulo à
criatividade. Certos tipos de coisas que seriam feitas por um Estado
que tivesse uma política cultural esclarecida. Isso precisa
ser feito, mas é perigoso interferir nisso diretamente. Se
você pensa em termos econômicos, como se houvesse uma
esfera de circulação, uma esfera de produção
e uma esfera de consumo, mexer no consumo ou mexer na produção
é muito perigoso, vira um dirigismo. Mas mexer na circulação
não, porque é um efeito indireto, facilita-se o acesso,
multiplicam-se as oportunidades e o estímulo. Isso seria
o mínimo que uma política cultural inteligente teria
que ter, sem ser dirigista.
Na graduação
da Escola de Música, estão surgindo grupos como o
Janela Brasileira, tentando fazer um tipo de música que seja
boa e ao mesmo tempo acessível. Essa última experiência,
por exemplo, que fizeram no Teatro Vila Velha, as 5 Pocket Óperas,
com exceção de uma delas, teve um resultado muito
bom e sem nenhuma concessão. Não houve qualquer problema
de comunicação com a audiência. Então
isso pode ser feito, apresentar coisa boa, de qualidade, a um público
que ainda precisa ser educado. Para mim, o nacionalismo seria o
direito que você tem e que eu tenho de me reconhecer na minha
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