Qual a importância
da discussão sobre identidades culturais para a sociedade
baiana hoje?
Hoje em dia,
no mundo globalizado, isto é, num mundo onde a globalização
se torna um movimento importante, isso fez emergir vivamente em
todos os lugares uma rediscussão da questão da identidade,
em termos novos, não mais em termos antigos (identidades
de nações ou identidades de classes, que eram os dois
grandes conformadores de identidade). Agora, há uma coisa
muito mais múltipla, várias possibilidades de identidades,
inclusive identidades a serem realizadas, exercidas simultaneamente.
Então, nesse quadro geral, a questão das identidades
culturais - no plural - torna-se algo extremamente importante. Isso
também é reforçado pela situação
específica da Bahia. Eu diria o seguinte: todos aqueles locais
onde, nesse contexto global, há certa densidade cultural,
tradições culturais, o tema das identidades culturais
é extremamente vigente.
Mas alguns
pesquisadores dizem que essa "baianidade" é também
uma identidade construída para satisfazer interesses como
os da indústria do turismo, por exemplo.
Toda identidade
é construída, e fabricada. Toda. Não existe
uma identidade que seja espontânea. Ela pode ser construída
de maneiras diferentes, mas sempre é construída. A
identidade não é uma coisa natural. É sempre
socialmente construída, culturalmente construída.
E construída sempre levando em conta interesses. Não
existe ação social que não seja orientada de
alguma maneira por interesses. Quando uma nação construiu
sua identidade nacional, isso estava ligado a interesses, sejam
eles políticos - um estado-nação forte -, sejam
eles econômicos - um mercado nacional -, algo importante em
termos econômicos. Sempre foi assim.
E como a
construção de uma identidade hegemônica - identificada
na Bahia e no Brasil a partir do termo "baianidade" -
interfere na sobrevivência ou na re-significação
de outras identidades, que também fazem parte da Bahia, mas
não são tão reconhecidas?
Os autores
mais pós-modernos falam dessa "multi-possibilidade simultânea"
de identidades. É verdade que as fontes identitárias
se multiplicaram e foram criadas condições maiores,
através das redes de sociabilidade, de redes de comunicação
cada vez mais amplas e múltiplas, da construção
de identidades, sem nenhuma dúvida. Mas acontece que as identidades
que se tornam hegemônicas tendem muito a aniquilar as outras
identidades, outras possibilidades de identidade. As "múltiplas
identidades" não são uma coisa tão simples,
não querem dizer que agora vivemos no melhor dos mundos.
Continua havendo dificuldades para que possa emergir uma diversidade
de identidades. Existe uma série de fatores, como interesses
políticos, econômicos, culturais que tendem a centrar-se
em identidades mais comuns, mais compartilhadas. E, por outro lado,
o ser humano, independentemente disso, tem um certo espírito
gregário. Ele gosta de se sentir pertencendo a determinados
grupos. A identidade é também um texto, um discurso
que tem uma boa recepção das pessoas, porque as pessoas
querem ser acolhidas, querem se sentir estando em algum lugar. Eu
diria que esse discurso hegemônico tende muito mais a dificultar
a emergência de outras identidades. Mas, claro, existem outras
identidades que, se não já estão formuladas,
são potenciais em qualquer lugar. E o predomínio de
uma delas sobre outras é histórica. Mesmo essa identidade
baiana, da maneira como está dada hoje ("a Bahia é
uma festa"; "o baiano não nasce, estréia"),
não existia na metade do século passado. É
uma construção para a qual contribui um conjunto infinito
de autores, sejam eles reconhecidos culturalmente, intelectuais,
artistas, sejam autores praticamente desconhecidos, pessoas do povo,
que vão também alimentando esse tipo de identidade.
Mas, como dizia Guerreiro, "a Bahia é um território
em pedaços". Existem regiões e grupos sociais
muito diferenciados, identidades potencialmente muito diferenciadas
- que não precisam estar, necessariamente, construídas.
O que aconteceu na Bahia é que essa identidade baiana é
de tal maneira forte, que ela tendeu a aniquilar as outras, impedir
que as outras emergissem. Portanto, isso significa uma grande afirmação
de uma identidade, de uma coisa comum que define os baianos, e uma
grande negação de outras possibilidades.
Ao mesmo tempo que o senhor fala da identidade hegemônica
aqui na Bahia, que tende a aniquilar as outras, fala-se muito também
do mundo atual como o mundo do respeito à diferença
e do reconhecimento da diferença. Não seria um papel
também das políticas culturais públicas dar
uma ênfase a essas outras identidades e a seus produtos artísticos?
São duas coisas diferentes. Que se confundem, mas são
diferentes. Uma coisa é falar de produtos culturais. Outra
coisa é falar de identidade, muito embora as políticas
públicas de cultura sempre tenham relacionado as duas. É
fácil dizer que as políticas públicas de cultura,
em qualquer lugar do mundo, têm de buscar uma certa diversidade.
Porque o alimento da cultura é a diversidade. Estou cada
dia mais convicto de que a cultura não se faz pelo igual,
pelo homogêneo; se faz pela diversidade, pelo diferente. Exatamente
no choque entre diferenças é que se tem os bons momentos
culturais. Por que a Bahia, nos anos 50, foi tão importante
e criou aquela geração de intelectuais? Porque aqui
se cunhou um ambiente de trocas - portanto um ambiente de diversidade
- muito interessante, onde a universidade tinha um papel destacado.
Existia uma troca de muitos registros culturais diferentes. Daí
surge uma elaboração cultural singular. Então,
qualquer política pública de cultura tem que correr
atrás da diversidade, não importa a situação.
O que não é tratar todos os produtos no mesmo patamar.
Eles são diferenciados. Há os produtos locais - uma
política pública tem que dar conta disso -, mas também
tem que tratar sempre os produtos nacionais, os produtos internacionais,
porque senão ela se torna uma coisa provinciana. A maneira
mais fácil de aniquilar uma cultura é colocá-la
no isolamento. Preservar a cultura é a pior coisa que existe.
A cultura que quer ser preservada numa redoma está morrendo.
A cultura deve ser colocada o tempo todo em contato com outras culturas.
A questão é de como fazer esse contato, que não
pode ser de uma perspectiva subalterna e deve privilegiar sempre
o respeito, o reconhecimento e a dignidade. Senão ela estará
numa relação de desigualdade, tendendo a "ajoelhar-se"
perante os outros produtos culturais. Mas cortar as possibilidades
de troca é impensável, não existe.
Quando se discutem
as identidades, tudo se complica. Os textos identitários
são discursos que buscam a coisa compartilhada, a coisa que
é comum. Não buscam o diferente. Afirmam-se pela -
como diz o nome - identidade, e não pela diferença.
Os produtos ainda não estão totalmente inscritos numa
teia de identidades. Posso pegar um produto de uma determinada cultura,
de uma identidade determinada e colocar em outro lugar. Eu trago
junto parte do discurso identitário que está colado
àquele produto, mas não trago toda a identidade. Quando
estou falando de identidades, não se trata de produtos isolados.
É uma espécie de amálgama, que une aqueles
vários produtos e lhes dá um sentido. Quando falo
em identidade cultural, é algo além dos produtos.
Ela se realiza pelos produtos, mas está além, costura
aqueles produtos, faz com que tenham alguma coisa em comum, compartilhada.
Aí é mais complicada a questão da diversidade
versus identidade porque a identidade sempre tende a ir contra a
diversidade. É uma situação meio paradoxal
fazer uma política cultural que trabalhe uma pluralidade
de identidades.
E identidades
que se afirmam por gênero, como a identidade feminista/feminina?
Ela também não se afirma, pela diferença, a
uma noção de sociedade masculina, por exemplo?
Mas toda identidade
é uma construção de coisa comum que se afirma
perante algo. A identidade sempre supõe o outro, para o bem
ou para o mal. A questão aí é interferir numa
sociedade a partir de políticas públicas, dando um
suporte para a emergência dessas várias identidades
simultaneamente. Não acho que seja uma questão simples.
Pode até ser fácil formulá-la no discurso,
mas em políticas públicas práticas, efetivas,
é difícil. A tendência das políticas
públicas no campo da cultura, até hoje ou até
bem pouco tempo atrás, era garantir a afirmação
de determinadas identidades. Afirmação de identidades
fortes. Sempre se colou, por exemplo, a questão da identidade
com a questão da nação, com a afirmação
da cultura nacional. Repensar uma outra possibilidade de uma política
pública que vá atrás da diversidade (e não
de produtos, mas de identidades diferentes) e faça essas
identidades conviverem, interagirem, não é facilmente
formulável, em termos de política cultural. É
um grande desafio.
Em que medida
a discussão de identidade cultural interfere no fazer artístico
da Bahia?
Em determinado
momento, a afirmação de uma identidade, unindo identidade
baiana com identidade afro-baiana - que é algo recente, começando
nos anos 70/80 -, foi feita de tal forma, que pode trazer graves
conseqüências para a cultura baiana. Justamente porque
esmaga muito a diversidade. Essa colagem entre uma coisa e outra
foi tão poderosa, e utilizando recursos tão poderosos,
que isso pode ter repercussões muito negativas para a criação
cultural e artística na Bahia. De coisas, inclusive, que
não tenham essa marca. A Argentina tem aquela marca identitária
que é o tango. Mas existiu lá um tango que renovou
muito o tango tradicional. Em Pernambuco, com o Mangue Beat e o
Mestre Ambrósio, isso também aconteceu. Na Bahia,
uma das coisas que considero temerosas é que a cultura do
axé e do pagode - embora o segundo tenha vindo mais tarde,
alterando um pouco o cenário - não contou com a incidência
de movimentos de vanguarda e renovação. Foi incapaz
disso até agora. De um movimento que a articulasse com outros
elementos, criando novas possibilidades. O que significa que ela
está paralisada. Inclusive porque foi se tornando muito repetitiva.
Em determinado momento, não havia coisas novas, mesmo que
sem uma alimentação de fora. Hoje em dia, os próprios
conjuntos de pagode e axé são muito iguais. Não
há um diferencial, uma coisa nova, diferente. Essa super-identidade,
se, em determinado momento, foi importante - constituiu, por exemplo,
uma indústria da cultura, uma indústria da música
fora do eixo Rio-São Paulo (algo fundamental) -, em outro,
inviabilizou trocas culturais. E ela pode entrar numa paralisia
tal, que se esgote. Porque as identidades também se esgotam.
Quanto à
possibilidade de identificação como baianos e brasileiros.
Como fica essa relação?
A identidade
nacional, brasileira, puxava alguns elementos de partes do Brasil,
mas era mais fortemente identificada com o Rio de Janeiro. O Rio
era o grande suporte da identidade nacional. Se se pensasse, por
exemplo, o samba, lembrava-se do samba do Rio mais do que do de
outros lugares. Quando se pensava mulher, mulata, tinha muito a
ver com o Rio também. O Rio, até um momento, era o
grande inspirador de uma identidade nacional. Ainda que essa identidade
recolhesse elementos aqui e ali, como a "baiana" etc.
Hoje, não. Hoje, a identidade nacional está um pouco
em crise, em declínio. Por várias razões. Por
haver hoje uma crise dos estados-nações, devido à
globalização, por exemplo. Uma crise do discurso mais
nacionalista. As forças nacionalistas no Brasil declinaram
muito. Há um discurso da globalização, da internacionalização,
de articular-se com o primeiro mundo, de ser primeiro mundo. Isso
vai muito contra um discurso que falasse sobre a peculiaridade do
Brasil, da importância do Brasil, da singularidade brasileira.
Então, nesse contexto, os discursos regionais cresceram também.
Agora, é engraçado que esse discurso nacional tem
que se integrar, permear toda a nação, e isso foi
algo recente no Brasil, já que não existia uma nação
brasileira articulada até os anos 30. Com o estado nacional
forte, esse discurso começa a ser construído, mas
a "brasilidade" só atinge realmente proporções
amplas nos anos 70 e 80 com a ditadura militar e com a televisão,
que também - via principalmente telenovelas e o jornal nacional
- tem um papel fundamental na constituição de um imaginário
nacional. Então, isso é uma coisa extremamente recente.
E logo depois que essa identidade nacional está mais ou menos
posta, ela começa a entrar em crise, e emergem as identidades
locais, o que eu não acho nem que seja um fenômeno
só brasileiro, na verdade. Talvez, no momento da globalização,
as pessoas precisem se sentir pertencendo a determinados lugares,
talvez elas não queiram ser jogadas na globalização
sem uma identidade local. Então, há toda uma emergência
do local, dos governos locais, não é só algo
do plano cultural, das identidades, mas também em outros
planos, como o político. Há uma revalorização
do local e das regiões.
E do convivencial
também?
Bom, o cotidiano,
hoje, é uma coisa perpassada pelo vivencial, pelo televivencial,
pelos espaços geográficos e eletrônicos. É
totalmente mesclado. Então, não é uma volta
para o local, o vivencial ao estilo antigo. Há um estilo
novo. É como se a situação de estar sendo perpassado
o tempo todo por fluxos culturais globais fizesse com que as pessoas,
as comunidades, os entes sociais, quisessem ter alguma identidade,
para não serem levados por esse "fluxo cultural global",
é como se precisassem de algum tipo de raiz, para não
serem totalmente desterritorializados. É uma espécie
de reterritorialização, mas de uma outra maneira,
numa situação outra, podemos dizer.
Então
eu acho que a identidade nacional deve continuar resistindo, deve
se redefinir. Só não sei se ela pode se manter nessa
estrutura. Talvez tenha que se abrir para uma diversidade maior.
É uma possibilidade. Eu digo o seguinte: a história
sempre é uma coisa em aberto. A história é
criação, então a gente pode falar de tendências,
mas não sabe exatamente o que vai acontecer. Ainda bem que
não sabemos.
Eu falei da importância de pensar a identidade num mundo globalizado,
aliás, muito menos globalizado e mais "glocalizado"
(global + local), essa tensão entre o global e o local, onde
essas coisas se afirmam e têm composições, mas
têm também conflitos. Mas essa questão da identidade
muda muito, porque nós temos um mundo hoje onde as redes
de sociabilidade e as redes de comunicação que têm
a ver com essas redes de sociabilidade são muito mais amplas.
Não existem mais só aquelas redes de sociabilidade
tradicionais, por aproximação, por convivência,
por proximidade geográfica quase. Em um dado momento, as
identidades estavam totalmente coladas e cunhadas a isso, a questão
do território, da convivência no território
comum etc. Hoje, a questão da identidade é mais complicada,
porque, para você criar "comunidades imaginadas"
(para usar o termo de Benedict Anderson), isso não é
feito mais só pelo território, pela proximidade física
e geográfica. É feito também por outros tipos
de rede, como, por exemplo, a identidade punk, baseada no contato
entre pessoas. Então tudo muda muito. E a participação
da mídia nisso é fundamental.
O senhor falou
da construção de uma identidade glocalizada a partir
das redes de comunicação e das redes de sociabilidade.
Mas como essas redes podem contribuir para o silenciamento ou a
abertura para as novas identidades, as identidades não hegemônicas
da sociedade baiana?
Falamos dessas redes como coisas separadas, mas elas não
são tão separadas assim. As redes de comunicação
perpassam, inclusive, as redes de sociabilidade. Se existe uma sociabilidade
comunitária, existe ali a comunicação se dando.
Uma das coisas politicamente mais importantes para que a sociedade
de hoje seja mais democrática, com respeito à diversidade,
é ter políticas claras de constituição
de mecanismos de sociabilidade e de redes de comunicação
democráticas, que permitam o acesso às várias
"comunidades culturais", garantindo a sua utilização
para consolidarem-se e afirmarem-se culturalmente. O suporte do
que estamos falando, das várias identidades, são essas
formas de comunicação e de interação.
A identidade não existe sem isso.
Essa política
pública, portanto, deve ser muito mais ampla do que uma política
cultural. É uma política de reconhecimento de determinadas
comunidades no plano social, no plano econômico - políticas
econômicas para viabilizar certas comunidades. Sem esse suporte,
não há diversidade.
O problema
é que, no mundo contemporâneo, elementos fortes vão
contra a diversidade. O mercado, controlado por essas mega-corporações
(inclusive os meios de comunicação), tem uma forte
tendência a uma homogeneização. E isso não
acabou. Dizem que não podemos falar mais no termo "Indústrias
Culturais", da lógica da indústria cultural.
Porque agora os mercados são segmentados. Mesmo com os mercados
segmentados, as indústrias da cultura tornam-se cada vez
conglomerados mais gigantescos com essas fusões que estão
acontecendo todo dia. Portanto, elas têm o poder muito mais
gigantesco de impor determinadas coisas, de controlar determinados
mercados. Isso é um dado. Existem tendências fortes,
no mundo contemporâneo, contra a diversidade. A prevalência
de alguns países hegemônicos, países como os
Estados Unidos, que se tornam big potências e impõem
sua lógica, sua política, numa infinidade de fóruns
internacionais, demonstra isso. Há uma tensão constante,
e a diversidade, para se afirmar, tem que ser construída
politicamente. Alguns pensadores pós-modernos parecem afirmar
que acabou a história e essas coisa são naturais.
Isso não é verdade; não é verdade que
não existam conflitos imensos. A história está
em aberto, e existem forças tensas, que apontam em várias
direções. Se não fosse assim, não haveria
história.
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