Prof. Dr. Milton Moura

"A Bahia é como se fosse a pele, a pele do Brasil, a pele do rosto, dos braços, dos peitos, das pernas, e também dos genitais – a pele que se continua com as mucosas."

 
 
 

 

 

 

Prof. Dr. Milton Moura
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA



Na sua tese de doutorado, há referências a certas especialidades ou especializações culturais que diferentes regiões no Brasil teriam. Quais seriam as especializações da Bahia?

Em primeiro lugar, é bom esclarecer que eu nunca quis dizer que uns lugares têm cultura e outros não, ou que uns têm mais ou menos cultura. Em alguns lugares, foi produzido um texto, uma contextura de significados, de dicções, de versões identitárias que se tornam emblemáticas de valores. Por exemplo, na Bahia, o texto que nós produzimos – ou que foi produzido por outros sobre nós e que nós encampamos e assimilamos – é um texto que privilegia o passado, a origem africana da população negro-mestiça, a presença dos orixás, como a continuação da África na Bahia. Um erotismo pululante – todos nós somos muitos gostosos, todo mundo quer transar com os baianos, com as baianas. Nós caminhamos pelas ruas como se dançássemos, o que é verdade. Somos cheios de lascívia, portanto estaríamos muito mais propensos a amar do que a trabalhar (e eu dou a minha parte para alimentar esse mito; cumpro minha parte, modestamente). Então, essa é a nossa especialização. Existem várias versões desse texto. Nem sempre aquelas que a gente vê podem parecer as mais sofisticadas, as mais bem feitas.

A Bahia tem um significado, um concerto de texto sobre o Brasil. Considero o texto sobre o Brasil, sobre a identidade nacional, um amalgamado muito pobre e muito pouco feliz de textos de regiões mais emblemáticas como o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão, a Amazônia como um todo e uma região não identificada com um lugar, que seria o sertão ou os sertões. Mas a Bahia é como se fosse a pele, a pele do Brasil, a pele do rosto, dos braços, dos peitos, das pernas, e também dos genitais – a pele que se continua com as mucosas. Quer dizer, tudo que o Brasil teria de endocrinológico no sentido de instintivo, beirando o imoral. O componente da morenidade, da mestiçagem lasciva, escorrendo prazer, escorrendo desejo. O salário do desejo é a manutenção do desejo. Então, a Bahia cumpre esse papel no concerto dos textos identitários sobre o Brasil.

Então, o texto identitário baiano, trazendo a idéia de "baianidade", torna-se hegemônico e reconhecido nacionalmente...
Bastante hegemônico. Essa formatação mais recente contém o que chamamos de axé-music, cultura de carnaval, governantes como ACM, Paulo Souto, César Borges e Imbassahy abraçados com as baianas de acarajé e os capoeiristas, os grandes intérpretes da música de carnaval, incluindo o Ilê Ayiê, Filhos de Gandhi e outros ícones da nossa cultura musical... Todos eles traduzem uma cultura, um texto de apelo consensual, de apelo não problemático, familiar, todos se conhecem, todo mundo é muito amigo. E é um texto muito religioso: reúne os santos, os Orixás, o senador Antônio Carlos, Irmã Dulce, Mãe Menininha, todo mundo fica assim no mesmo panteão místico. Isso é muito eficaz. Isso solda, através da mídia, uma imagem de familiaridade, de integração.

As pessoas experimentam, na vida cotidiana, a constatação de que nem tudo é consensual assim. Mas esse texto age como um vetor. Nenhum texto identitário é totalizante: ele tem brechas. Mas o que eu vejo é a sobrevivência do texto da baianidade. E tem muito tempo que isso está sendo emitido, enunciado e ainda tem muito fôlego.

E o senhor consegue identificar outros textos identitários na Bahia?
A região do Cacau tem outro texto identitário, centrado no personagem Gabriela. É uma sensualidade mestiça, mas que não é afro, não é definida com referência aos Orixás. O próprio personagem Gabriela tem uma referência muito longínqua aos Orixás. E veja que, quando eu falo baianidade, é o texto sobre Salvador e sobre o Recôncavo. Não estou nem considerando o restante. Mas a região do Cacau está obtendo um êxito considerável com o texto da sensualidade tropical, não tão identificada com o afro, muita mestiça, mais associada a coqueirais, praias, comidas gostosas, Gabriela – o mito de Gabriela é fantástico! Então, tudo isso é um êxito também. Eu não saberia falar sobre outras formulações, como, por exemplo, seria no sertão, mas que não aparece muito na mídia. Hoje em dia, é muito difícil você falar de um texto identitário de amplo alcance que não esteja na mídia.

E o texto da baianidade, até pelo grande espaço que tem na mídia, não oprime os outros textos?

E os outros estão formulados? Estão formulados nesse código? Quero dizer, os outros discursos identitários já foram desenvolvidos de forma que pudessem ser assimilados pela mídia? Eu não os vejo assim. Esse texto é só uma contextura, ele foi tecido, é um tecimento, é o quê? Eu pergunto: existe isso construído, o sertão? E quem disse que o texto de Juazeiro não é o mesmo de Petrolina, com o rio no meio? Mas talvez a sua pergunta pudesse ser compreendida considerando que existem outras expressões de Salvador, como as da classe média, que canonizou a Barra nos anos sessenta e setenta, e que não era afro, mas que foi responsável por um certo vanguardismo cultural nos anos 60 e 70. Um vanguardismo baiano. A tropicália não é afro, e foi produzida por artistas quase todos baianos, no Rio de Janeiro e São Paulo, nos ano 60. Tem Carmem Miranda, essas coisas todas...

Existe uma identidade entre a Bahia e o Nordeste?

Existe um texto identitário sobre o Nordeste. A identidade consiste em textos, não é? O que se chama de Nordeste é uma composição de ícones da literatura regionalista dos anos 30 e 40, da música de Luiz Gonzaga, e dos esforços dos políticos nacionalistas, que depois se articularam com setores da ditadura militar, para a criação da SUDENE, e aí "inventaram" o Nordeste. O termo Nordeste foi usado pela primeira vez em 1912, 1913, por aí. Existia como ponto cardeal, assim como Sudoeste, Sudeste, Noroeste. A invenção do Nordeste se dá pela SUDENE, pelo aparelho burocrático nacional, o IBGE, a divulgação disso nas escolas... Todo tipo de instituição agora se divide em seções ou zonais ou regionais. Desde os bispos, até as lavadeiras, passando pelos radialistas e pelos montadores de mula, qualquer coisa tem que ter Norte, Nordeste, Sul, 1, 2, 3... Eu acredito que o texto Nordeste está fundamentado em ícones diferentes dos da baianidade. Ah, mas e essa coisa de "a Bahia faz parte do Nordeste, está no mapa"? No mapa do IBGE, hoje. Antes, ela fazia parte da região Leste Setentrional. O texto sobre o Nordeste vem com seus ícones, com problemas como o da seca, da água. Tem como artífice principal a SUDENE e aparece por uma produção onírica-telúrica ligada à terra, ao natural, feita por pessoas como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, que são herdeiros – menos geniais – de Luiz Gonzaga. O texto da baianidade não vai por aí. Considera o Dique do Tororó, o mar da Bahia, Iemanjá, Oxum, a água em abundância. Literalmente, as nádegas são ícones muito recorrentes no texto da baianidade. Não vejo nenhuma possibilidade de identificação entre a baianidade e isso que se chama de Nordeste. Apenas a coincidência cartográfica.

Voltando para a baianidade, algumas pessoas falam que essa identidade, esse texto que se construiu é um texto muito fechado, que não absorve elementos que poderiam servir como elementos de vanguarda, para que o próprio texto se renove e continue existindo. Existe o perigo de a baianidade se consumir?

Ela chegar num ponto de estrangulamento? Acho que sim. Só que, desde 92, eu ouço falar nisso e até hoje ela conseguiu sobreviver. O discurso da baianidade conseguiu integrar o pagode – porque não tem nada mais baiano, mais lascivo, mais imoral e mais fascinante do que o pagode baiano – que tomou conta de boa parte do espaço do carnaval. Isso é uma novidade, é coisa dos anos noventa, o pagode. Quando os grandes blocos, as grandes bandas virem que seus espaços de exposição na mídia, de enunciação na mídia ou de captação de foliões estiverem diminuindo ou diminuído – o que já aconteceu neste carnaval, os blocos venderam menos abadás – eles vão atrás de novas frentes de exploração, de atuação. Mas dificilmente um intelectual pode captar isso a priori. Porque, até agora, os grandes ícones da axé-music estão aí fortes: Daniela, o Chiclete, Ivete, Netinho... Taí uma coisa interessante: Netinho sai do Beijo e vai para os Internacionais, criando o Internet. É muito interessante o próprio nome, a cópula contida no nome, mostrando os Internacionais, que é um bloco tradicionalíssimo, muito conservador dos anos 60. Baiano sabe assimilar novidades. Não assimila quando não interessa. Às vezes, o mais interessante, o mais vantajoso é conservar o que se tem.

Então o trio tecno de Daniela e a participação de alguns cantores de outros estilos da música brasileira como Cássia Eller, Marisa Monte, inclusive até o sertanejo como Zezé di Camargo, é uma demonstração dessa capacidade de absorção?

Eu espero ter morrido quando eles vierem cantar no carnaval! Se já vieram, por favor não me informe, porque eu não estava presente. Falando sério agora: creio que o carnaval pode assimilar tudo isso numa boa, não que eu goste, mas acho que isso pode vir a acontecer sim. Só que, mais do que uma abertura, isso mostra o interesse das gravadoras em promover os seus sucessos. Então, essas gravadoras entram em conexão com os circuitos da mídia de exposição daqui e com a programação do carnaval. Se você comprar, em junho, em Santa Catarina, um pacote de hotel para o carnaval daqui, você já sabe que, no Sábado, vai sair com Ivete, domingo com Netinho, segunda-feira é livre, para o carnaval étnico – a Mudança do Garcia, essas coisas – e na terça uma outra coisa. Então, os artistas vêm também por uma força muito grande das gravadoras. Por isso, acho muito interessante que os blocos afro estejam plugados nesse mundo sim, porque eles têm que atuar como mídia, e não tocando com megafone no Pelourinho apenas.

 

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