Na sua tese
de doutorado, há referências a certas especialidades
ou especializações culturais que diferentes regiões
no Brasil teriam. Quais seriam as especializações
da Bahia?
Em primeiro
lugar, é bom esclarecer que eu nunca quis dizer que uns lugares
têm cultura e outros não, ou que uns têm mais
ou menos cultura. Em alguns lugares, foi produzido um texto, uma
contextura de significados, de dicções, de versões
identitárias que se tornam emblemáticas de valores.
Por exemplo, na Bahia, o texto que nós produzimos
ou que foi produzido por outros sobre nós e que nós
encampamos e assimilamos é um texto que privilegia
o passado, a origem africana da população negro-mestiça,
a presença dos orixás, como a continuação
da África na Bahia. Um erotismo pululante todos nós
somos muitos gostosos, todo mundo quer transar com os baianos, com
as baianas. Nós caminhamos pelas ruas como se dançássemos,
o que é verdade. Somos cheios de lascívia, portanto
estaríamos muito mais propensos a amar do que a trabalhar
(e eu dou a minha parte para alimentar esse mito; cumpro minha parte,
modestamente). Então, essa é a nossa especialização.
Existem várias versões desse texto. Nem sempre aquelas
que a gente vê podem parecer as mais sofisticadas, as mais
bem feitas.
A Bahia tem
um significado, um concerto de texto sobre o Brasil. Considero o
texto sobre o Brasil, sobre a identidade nacional, um amalgamado
muito pobre e muito pouco feliz de textos de regiões mais
emblemáticas como o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro,
São Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão, a Amazônia
como um todo e uma região não identificada com um
lugar, que seria o sertão ou os sertões. Mas a Bahia
é como se fosse a pele, a pele do Brasil, a pele do rosto,
dos braços, dos peitos, das pernas, e também dos genitais
a pele que se continua com as mucosas. Quer dizer, tudo que
o Brasil teria de endocrinológico no sentido de instintivo,
beirando o imoral. O componente da morenidade, da mestiçagem
lasciva, escorrendo prazer, escorrendo desejo. O salário
do desejo é a manutenção do desejo. Então,
a Bahia cumpre esse papel no concerto dos textos identitários
sobre o Brasil.
Então,
o texto identitário baiano, trazendo a idéia de "baianidade",
torna-se hegemônico e reconhecido nacionalmente...
Bastante hegemônico. Essa formatação mais recente
contém o que chamamos de axé-music, cultura de carnaval,
governantes como ACM, Paulo Souto, César Borges e Imbassahy
abraçados com as baianas de acarajé e os capoeiristas,
os grandes intérpretes da música de carnaval, incluindo
o Ilê Ayiê, Filhos de Gandhi e outros ícones
da nossa cultura musical... Todos eles traduzem uma cultura, um
texto de apelo consensual, de apelo não problemático,
familiar, todos se conhecem, todo mundo é muito amigo. E
é um texto muito religioso: reúne os santos, os Orixás,
o senador Antônio Carlos, Irmã Dulce, Mãe Menininha,
todo mundo fica assim no mesmo panteão místico. Isso
é muito eficaz. Isso solda, através da mídia,
uma imagem de familiaridade, de integração.
As pessoas
experimentam, na vida cotidiana, a constatação de
que nem tudo é consensual assim. Mas esse texto age como
um vetor. Nenhum texto identitário é totalizante:
ele tem brechas. Mas o que eu vejo é a sobrevivência
do texto da baianidade. E tem muito tempo que isso está sendo
emitido, enunciado e ainda tem muito fôlego.
E o senhor consegue
identificar outros textos identitários na Bahia?
A região do Cacau tem outro texto identitário, centrado
no personagem Gabriela. É uma sensualidade mestiça,
mas que não é afro, não é definida com
referência aos Orixás. O próprio personagem
Gabriela tem uma referência muito longínqua aos Orixás.
E veja que, quando eu falo baianidade, é o texto sobre Salvador
e sobre o Recôncavo. Não estou nem considerando o restante.
Mas a região do Cacau está obtendo um êxito
considerável com o texto da sensualidade tropical, não
tão identificada com o afro, muita mestiça, mais associada
a coqueirais, praias, comidas gostosas, Gabriela o mito de
Gabriela é fantástico! Então, tudo isso é
um êxito também. Eu não saberia falar sobre
outras formulações, como, por exemplo, seria no sertão,
mas que não aparece muito na mídia. Hoje em dia, é
muito difícil você falar de um texto identitário
de amplo alcance que não esteja na mídia.
E o texto
da baianidade, até pelo grande espaço que tem na mídia,
não oprime os outros textos?
E os outros
estão formulados? Estão formulados nesse código?
Quero dizer, os outros discursos identitários já foram
desenvolvidos de forma que pudessem ser assimilados pela mídia?
Eu não os vejo assim. Esse texto é só uma contextura,
ele foi tecido, é um tecimento, é o quê? Eu
pergunto: existe isso construído, o sertão? E quem
disse que o texto de Juazeiro não é o mesmo de Petrolina,
com o rio no meio? Mas talvez a sua pergunta pudesse ser compreendida
considerando que existem outras expressões de Salvador, como
as da classe média, que canonizou a Barra nos anos sessenta
e setenta, e que não era afro, mas que foi responsável
por um certo vanguardismo cultural nos anos 60 e 70. Um vanguardismo
baiano. A tropicália não é afro, e foi produzida
por artistas quase todos baianos, no Rio de Janeiro e São
Paulo, nos ano 60. Tem Carmem Miranda, essas coisas todas...
Existe uma
identidade entre a Bahia e o Nordeste?
Existe um texto
identitário sobre o Nordeste. A identidade consiste em textos,
não é? O que se chama de Nordeste é uma composição
de ícones da literatura regionalista dos anos 30 e 40, da
música de Luiz Gonzaga, e dos esforços dos políticos
nacionalistas, que depois se articularam com setores da ditadura
militar, para a criação da SUDENE, e aí "inventaram"
o Nordeste. O termo Nordeste foi usado pela primeira vez em 1912,
1913, por aí. Existia como ponto cardeal, assim como Sudoeste,
Sudeste, Noroeste. A invenção do Nordeste se dá
pela SUDENE, pelo aparelho burocrático nacional, o IBGE,
a divulgação disso nas escolas... Todo tipo de instituição
agora se divide em seções ou zonais ou regionais.
Desde os bispos, até as lavadeiras, passando pelos radialistas
e pelos montadores de mula, qualquer coisa tem que ter Norte, Nordeste,
Sul, 1, 2, 3... Eu acredito que o texto Nordeste está fundamentado
em ícones diferentes dos da baianidade. Ah, mas e essa coisa
de "a Bahia faz parte do Nordeste, está no mapa"?
No mapa do IBGE, hoje. Antes, ela fazia parte da região Leste
Setentrional. O texto sobre o Nordeste vem com seus ícones,
com problemas como o da seca, da água. Tem como artífice
principal a SUDENE e aparece por uma produção onírica-telúrica
ligada à terra, ao natural, feita por pessoas como Alceu
Valença, Geraldo Azevedo, que são herdeiros
menos geniais de Luiz Gonzaga. O texto da baianidade não
vai por aí. Considera o Dique do Tororó, o mar da
Bahia, Iemanjá, Oxum, a água em abundância.
Literalmente, as nádegas são ícones muito recorrentes
no texto da baianidade. Não vejo nenhuma possibilidade de
identificação entre a baianidade e isso que se chama
de Nordeste. Apenas a coincidência cartográfica.
Voltando
para a baianidade, algumas pessoas falam que essa identidade, esse
texto que se construiu é um texto muito fechado, que não
absorve elementos que poderiam servir como elementos de vanguarda,
para que o próprio texto se renove e continue existindo.
Existe o perigo de a baianidade se consumir?
Ela chegar
num ponto de estrangulamento? Acho que sim. Só que, desde
92, eu ouço falar nisso e até hoje ela conseguiu sobreviver.
O discurso da baianidade conseguiu integrar o pagode porque
não tem nada mais baiano, mais lascivo, mais imoral e mais
fascinante do que o pagode baiano que tomou conta de boa
parte do espaço do carnaval. Isso é uma novidade,
é coisa dos anos noventa, o pagode. Quando os grandes blocos,
as grandes bandas virem que seus espaços de exposição
na mídia, de enunciação na mídia ou
de captação de foliões estiverem diminuindo
ou diminuído o que já aconteceu neste carnaval,
os blocos venderam menos abadás eles vão atrás
de novas frentes de exploração, de atuação.
Mas dificilmente um intelectual pode captar isso a priori. Porque,
até agora, os grandes ícones da axé-music estão
aí fortes: Daniela, o Chiclete, Ivete, Netinho... Taí
uma coisa interessante: Netinho sai do Beijo e vai para os Internacionais,
criando o Internet. É muito interessante o próprio
nome, a cópula contida no nome, mostrando os Internacionais,
que é um bloco tradicionalíssimo, muito conservador
dos anos 60. Baiano sabe assimilar novidades. Não assimila
quando não interessa. Às vezes, o mais interessante,
o mais vantajoso é conservar o que se tem.
Então
o trio tecno de Daniela e a participação de alguns
cantores de outros estilos da música brasileira como Cássia
Eller, Marisa Monte, inclusive até o sertanejo como Zezé
di Camargo, é uma demonstração dessa capacidade
de absorção?
Eu espero ter
morrido quando eles vierem cantar no carnaval! Se já vieram,
por favor não me informe, porque eu não estava presente.
Falando sério agora: creio que o carnaval pode assimilar
tudo isso numa boa, não que eu goste, mas acho que isso pode
vir a acontecer sim. Só que, mais do que uma abertura, isso
mostra o interesse das gravadoras em promover os seus sucessos.
Então, essas gravadoras entram em conexão com os circuitos
da mídia de exposição daqui e com a programação
do carnaval. Se você comprar, em junho, em Santa Catarina,
um pacote de hotel para o carnaval daqui, você já sabe
que, no Sábado, vai sair com Ivete, domingo com Netinho,
segunda-feira é livre, para o carnaval étnico
a Mudança do Garcia, essas coisas e na terça
uma outra coisa. Então, os artistas vêm também
por uma força muito grande das gravadoras. Por isso, acho
muito interessante que os blocos afro estejam plugados nesse mundo
sim, porque eles têm que atuar como mídia, e não
tocando com megafone no Pelourinho apenas.
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