"A identidade nacional é alguma coisa construída e distribuída no sentido de produzir uma sensação de pertencimento... Não é que a Bahia esteja fora da nacionalidade. Ela está no centro da nacionalidade."

 
 
 

 

 

 

Prof. Dra. Eneida Leal Cunha
Prof. Titular do Instituto de Letras da UFBA

 

Que relação a senhora faria entre a produção artística e a questão das identidades culturais aqui na Bahia?

A produção cultural, na sua diversidade, ou seja, música, literatura, dança, artes-plásticas produzidas aqui na Bahia, cada vez mais tem como foco direto ou como paisagem contra a qual se delineia, a questão da afro-descendência. Esse seria o tópico não só a partir do qual essa produção se faz, como também a partir do qual ela é reconhecida de fora, de que as pessoas se alimentam.

Há confrontos entre identidade baiana e nacional?

A identidade nacional é alguma coisa construída e distribuída no sentido de produzir uma sensação de pertencimento. Caso essa sensação de pertencimento seja possível, é preciso que as identidades ou as imagens identitárias comportem a diversidade da população. Não no sentido de comportar tolerantemente, mas no sentido de quase diluir. Diluir separações, tensões sociais, diferenças culturais... Então, a identidade nacional é produzida exatamente para cimentar alguma coisa que em si é dispersa, tensa, conflitante... Todo o discurso identitário do Estado-nação brasileiro, desde o momento em que ele se formula de maneira nítida, em meados do século XIX, até hoje, é feito no sentido de tornar mais "plástica" essa identidade. Isso acontece em um processo incessante de revisão das imagens de nacionalidade, no sentido de que ela possa contemplar, cada vez mais, e ao mesmo tempo diluir tudo aquilo que separa efetivamente a população brasileira. Eu não pensaria e não creio que se pense, aqui, numa identidade baiana. É muito curioso, se a gente compara, por exemplo, a situação do Rio Grande do Sul e da Bahia, quando estudamos o regionalismo do Rio Grande do Sul na literatura. Uma vez fiz uma observação irônica num seminário, dizendo que eles não têm uma literatura regionalista e sim nacionalista. Porque eles têm uma idéia de uma comunidade muito bem delineada que partilha uma memória e que tem projetos futuros. É isso que caracteriza o discurso da nacionalidade. Aqui isso não se desenvolveu nessa direção. O que houve sempre na Bahia foi um atrito com a perspectiva da construção de imagens identitárias de nacionalidade.

Como se deu ou se dá esse atrito?

Poderia dizer, citando um trabalho recentemente concluído de Lizzir Arcanjo, uma tese de doutoramento que eu orientei. Ela acompanha essa polêmica entre a Bahia e a Côrte através da imprensa da Bahia e do Rio de Janeiro. O que saiu nos jornais, nos panfletos da época. A polêmica vinha de uma competição entre duas metrópoles. Uma metrópole colonial, já destituída do seu poder econômico e a metrópole nacional, a côrte do Rio de Janeiro. Era uma disputa por imagens de identidade. Então, por exemplo, todo culto ao 2 de julho vem disso. É curioso por que não é que a Bahia esteja fora da nacionalidade. Ela está no centro da nacionalidade. Então, o 2 de julho passa a ser o lugar efetivo da independência. A Bahia é a única região cultural que tem na sua memória esse embate, que é pensado como um embate do conjunto da sociedade, com toda a sua mitologia. E que tem uma ressonância popular muito grande. Então o conflito não se dá numa perspectiva separatista mas de uma tensão, iniciada em fins do século XIX, entre a província - não porque a província se pense como lugar da diferença, ao contrário, ela se pensa o lugar do universal, do nacional. E é uma coisa que hoje, de certa maneira, se repete. A cultura baiana e o produto cultural baiano, são mais legítimos porque ressoa neles, mais visivelmente, a afro-descendência. As tensões são nesse sentido.

Isso para os baianos?

Se no século passado essa afro-descendência era objeto de escárnio, isso também aparece nesse trabalho que eu citei, a referência à Bahia, nos jornais do Rio é sempre a velha mulata, a política do dendê, a terra do vatapá... Todos epítetos ligados à questão africana e todos usados de forma pejorativa. Eram elementos de diminuição. No século XIX, a Bahia não tem nenhum orgulho dessa sua marca, ela tem muito orgulho da sua diferença, mas diferença em termos de memória. Ela é a origem do país, é o lugar em que se consumou a independência; enfim, ela abre e fecha esse período da história colonial. É assim que a Bahia se pensa.

A senhora poderia falar um pouco mais sobre essa questão hoje?

Hoje em dia, no imaginário brasileiro, a Bahia tem uma peculiaridade, uma força, que eu acho que são muito interessantes. Se você examinar a articulação entre a produção cultural com ingredientes mais explícitos da cultura baiana e a aliança disso com a mídia verá a força da música popular da Bahia. Eu acho que ninguém pode pensar a questão da identidade no Brasil fora da música popular. Se até 1950 a gente poderia pensar, em termos artísticos, a questão identitária a partir da literatura - porque o debate estava na literatura -, hoje o debate está na música popular. Não dá para pensar essa questão sem pensar na música popular. É sem dúvida o fenômeno artístico mais importante do Brasil. Até pelas suas particularidades. A música popular brasileira é popular, mas ultrapassa isso. Com as trocas com a comunidade letrada ela articula uma fração excluída com uma fração hegemônica. Isso acontece com Caetano Veloso. É popular e erudito. A música popular brasileira, como diz Silviano Santiago, tem uma relação permanente de atrito e troca com a alta cultura. Ao mesmo tempo que marca essa diferença, estabelece algumas trocas. A música fica entre a alta cultura e a cultura popular não letrada, ainda não urbana, ou essa memória cultural herdada da África e a cultura de massa/indústria cultural. A música mexe com tudo. Por isso, tem tanto vigor. É um campo fértil para se pensar essas questões.

Então, embora não esteja necessariamente em confronto, há uma diferença marcante na construção dos discursos identitários na Bahia e em outros estados desta nação...

Exatamente. Um bom exemplo é o Carnaval dos 500 anos. Esse foi o tema no Rio [de Janeiro] e aqui. Lá o discurso é linear e espetacular. Até essa expressão desfilar. Aqui o bloco carnavalesco passa. Observamos algumas escolas e alguns blocos afro, atentando para a questão da memória do negro no Brasil, resgatada pelos desfiles das escolas e pelos blocos afro. O que estava na escola de samba era a espetacularização disso que a gente chama de história oficial dos africanos. Era a história do navio negreiro... A vitimação física, um imaginário difuso do que seria uma mitologia africana com apelo visual muito grande e cuja cena culminante era uma negra sendo estuprada. Isso se repetia em várias escolas. Bem, as imagens de vitimação são muito ambíguas. Ao mesmo tempo que denunciam reforçam no imaginário geral essa figura menor, violentada que é o negro. Por outro lado, o Ilê Aiyê (Bloco Afro) tinha como tema Terra de Quilombos. Não era nenhuma elegia a algum quilombo em especial. No fundo articulava a questão do quilombo à posse da terra. Além disso, os temas do Ilê não são exclusivamente carnavalescos. São fruto de toda uma programação pedagógica, didática, de construção mesmo dessa identidade negra diferencial aqui na Bahia. O discurso do Ilê contrastava com as imagens da afro descendência que foram diluídas, oficializadas e distribuídas no Brasil todo como elas estão lá no Rio de Janeiro. O que aconteceu na escola de samba foi uma encenação de imagens oficiais, instituídas da brasilidade. Já no Ilê, a retomada de um tópico, que é traumático para a memória da história oficial e traumático para a atualidade quando articula a questão dos quilombos à posse da terra, pois termina abordando a questão daqueles que foram espoliados da própria terra. São diferenças marcantes e decisivas.

Além do Ilê Ayê, que outras manifestações artísticas contemporâneas, chamam a sua atenção aqui em Salvador e que poderiam, por exemplo, compor a programação cultural da SPBC?

Antes de tudo devemos evitar a folclorização. Posso citar algumas coisas e quero salientar que a forma de apresentação tem que estimular o debate, a reflexão.

Um espetáculo da Escola de Teatro - Lábaro Estrelado - me chama muita atenção. Os produtos das ONGs, que aparentemente estão à margem da indústria cultural: lembro-me agora do Bagunçaço [música], CRIA [teatro], Projeto Axé [dança, música e outros]. Acho interessante considerar a questão identitária indígena também: a exposição fotográfica de Renata David. Alguns trabalhos de Paulo Cunha, da Escola de Teatro também. E no cinema tenho visto interessantes documentários, curtas, feitos aqui na Bahia.

 

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