Marcio Meireles

"A Bahia não é só capoeira e dendê. É tecnologia também, é internet... É como a gente se posiciona diante disso, tanto do tradicional quanto do contemporâneo, do que está a vir. Se estamos atentos ao nosso umbigo, estamos atentos à nossa cultura, inclusive a gente parte para o mundo, aberto ao mundo... "

 
 
 

 

 

 

Márcio Meirelles
diretor do Teatro Vila Velha


Estamos nos propondo a discutir um pouco este lugar, Bahia. É importante discutir identidade cultural nesse lugar?

Acho que é... A gente está vivendo um momento muito difícil, estamos perdendo todos os parâmetros, as certezas... Eu acho que discutir as origens talvez leve ao entendimento das conseqüências. Estamos em um mundo que muda constantemente e é preciso um direcionamento nessas modificações que ele vai sofrendo. Não tem mais um governo político, a divisão geográfica... É um mundo sem governos. As leis são as de mercado. Um mercado cada vez menos humano, mais monstruoso. Se você entende a sua origem, quem você é, e preserva determinados valores, você também corre o risco de excluir o que não é isso. Entender quem eu sou me leva a entender e respeitar quem o outro é, que às vezes é diferente de mim. Isso ampliando para o pessoal e também para o nacional. Entender o quem somos pode levar a um nacionalismo e gerar uma série de coisas que a gente tem visto ao longo da história, com conseqüências muitas vezes dramáticas. Através disso, manipulam-se certos mecanismos que geram guerra. Eu sou branco, você é negro, você é maometano e não cristão, eu estou certo e você está errado. Tudo isso gera essa manipulação que a gente está vendo. As guerras inter-étnicas lá na África, nos Balcãs... Então, entender o que a Bahia é, o que a Bahia dá, não é achar que a Bahia é o modelo e que o outro é errado.

A que aspectos da sociedade, exatamente, você se refere quando se sente assim?

É um equilíbrio tão delicado, que a gente tem que procurar na vida, o tempo inteiro, entre essa grande questão que se coloca no momento: a globalização e a regionalização. A globalização. para mim, é um novo nome de imperialismo. É conquista de territórios, de mercado, de uma série de coisas. Mais explícita e, ao mesmo tempo, mais disfarçada. As grandes indústrias e os grandes trustes internacionais manipulam os governos. Destroem as fronteiras. Isso vai deteriorando certas consciências e valores. Hoje, se você chama um jovem ator para trabalhar, ele primeiro quer saber quanto vai ganhar. O compromisso ou a escolha de um compromisso com o que fazer, depende disso. Eu vejo como um descompromisso geral, emocional, tudo. Isso é terrível. Se você faz alguma coisa para sobreviver, você antes tem que saber onde está se metendo e a quem você está apoiando. Depois você resolve se faz ou não faz. Resolve quanto vale sua alma. Mas, para saber quanto vale sua alma, você precisa saber a quem você está vendendo. Porque você pode dar de graça a sua alma, ou você pode cobrar muito alto, calculando o prejuízo que vai ter. Às vezes, o dinheiro compensa, para alguns.

Como isso se manifesta na sua produção artística?

Tentamos delinear a fronteira entre o entretenimento e a cultura. A cultura é a forma de fazer de um povo. De ver o mundo e de representar esse mundo. Através de qualquer coisa. De como se cumprimenta, de como se comporta diante da morte, diante do nascimento, os rituais... quer dizer, todo o caldo cultural, que marca a identidade de um grupo social qualquer. O entretenimento é exatamente a utilização desse caldo cultural para distrair as pessoas dos grandes problemas... O entretenimento não é a cultura, faz parte de uma cultura. Às vezes, é preciso se distrair, dessas coisas todas. Se dispersar, se enganar e depois voltar a si, voltar a refletir sobre. Acho que a cultura é esse processo de reflexão sobre o mundo, sobre o que se desconhece, sobre o que se conhece e até de descobrir o que se não conhece e se questionar sobre o que se conhece de uma forma própria. E o mundo é tão rico, porque tem tantas formas próprias, que a gente nem conhece. Tribos que se acabam por aí, pequenos agrupamentos que se transformam... O primeiro passo é esse e, para a gente, neste momento, está muito difícil isso, para a gente Brasil, Bahia, tá cada vez mais difícil separar... Exatamente por causa desse conglomerado de forças de venda e de compra, de impor regras de mercado a coisas que não fazem parte disso. A cultura não é um produto de consumo. Até existem produtos culturais de consumo, mas a cultura não é um produto de consumo, é um produto estrutural. Não é uma coisa que se coloca sobre; é a parte íntima, a espinha dorsal de uma nação, no sentido de grupo social autônomo com uma identidade e com um poder. Acho que esse é um primeiro ponto, e o mais difícil. Depois disso, delineadas as fronteiras, como é que a gente fala para o próximo? E que, ao mesmo tempo, não é tão próximo assim? É distante porque está do outro lado, é o interlocutor, é quem você, às vezes, desconhece e tem que tocar, e tem que entender, ouvir e contracenar. No caso do teatro, também é dúbio, é muito complicado, porque a gente tá falando para um público meio anestesiado, em busca de distração, em busca de se distrair dessa situação toda, mas que precisa ser sacudido, ser acordado. Mas a vantagem do teatro é que trabalhamos com pessoas, e elas já trazem em si todas essas questões sociais. Quando eu junto seis atores, eu tenho seis universos, seis qualidades de questões que, mesmo sendo uma só, são feitas de diversos ângulos. Enfim, se eu estou atento aos verdadeiros parceiros, a quem constrói junto, a essa pluralidade que as pessoas trazem na hora de fazer decisões, escolher o figurino, a música, o cenário, eu já estou atento a essa identidade cultural nossa, e à evolução mesmo... A Bahia não é só capoeira e dendê. É tecnologia também, é internet... É como a gente se posiciona diante disso, tanto do tradicional quanto do contemporâneo, do que está a vir. Se estamos atentos ao nosso umbigo, estamos atentos à nossa cultura, inclusive a gente parte para o mundo, aberto ao mundo...

Particularmente, como é que você se vê aqui na Bahia? Como você situa o seu ser criativo nesse panorama?

Sinto um jogo de interesses muito grande, que homogeneiza, abafa a criatividade das pessoas, a espontaneidade delas, a criatividade para sobreviver. Veja o caso das barracas das festas de largo e do próprio carnaval (...) Daí, a gente tem esse teatro, fazemos parte da construção desse espaço. Um processo que vem desde 1959. Estamos em uma briga contra o mercado. Não somos mercadoria. A troca do produto artístico criado nesse teatro deve ser uma outra troca. Não é só o preço do ingresso, o patrocinador. É uma série de coisas. Sinto esse lugar como uma peça de resistência. Esse teatro foi inaugurado em 1964, no ano do Golpe Militar, e, durante toda a ditadura, aconteceram reuniões aqui, espetáculos, negociações com a censura, com o poder, porque é um teatro dentro de uma área do Estado, e o acesso aqui é controlado por dois portões, sendo um deles controlado pelo exército. Durante a ditadura, era controlado mesmo, as pessoas eram abordadas, o acesso era dificultado, e Juracy Magalhães, governador e representante local desse estado de coisas, liberou o acesso. Ele deu uma declaração pública de que esse teatro era muito importante para a cidade. Talvez porque ele enxergasse aqui a válvula de escape. Que era necessária. Interessava a eles. Eles não foram bonzinhos ou tolerantes deixando que o teatro funcionasse. Era a função da resistência. A gente chegou aqui com o propósito de reforçar e atualizar essa história, que estava interrompida. Com a morte de João Augusto, o teatro ficou um tempo sem um projeto político, estético. Esse teatro se insere nesse espaço sociocultural e político baiano, afirmando uma cultura popular, tradicional e, ao mesmo tempo, apontando para certos caminhos. Junto com a gente veio o Bando de Teatro Olodum, vieram outros grupos que se dissolveram mas que tinham uma pesquisa estética própria. Ao mesmo tempo, foi criado o Vila Dança, a Companhia de Teatro dos Novos foi reestruturada. O Bando de Teatro do Olodum delimita, cria os contornos, o perfil, a identidade desse teatro. Vem de uma parceria, de uma cumplicidade, de um projeto conjunto com o Olodum, uma organização gerada pelo carnaval. E quando vem pra cá, foi o fim dessa união. Agora, só resta o nome e uma admiração à distância. Enfim, veio toda essa força popular. Diferente da primeira Companhia de Teatro dos Novos, que eram intelectuais, universitários que romperam com isso e buscavam essa fonte popular, buscavam reproduzir tudo isso no palco. O Bando de Teatro Olodum vem das classes operárias, as pessoas, os atores, vêm de outros grupos e movimentos periféricos, não em termos de geografia, mas de status. Esse teatro, muitas vezes, não é reconhecido como teatro. Esses atores vêm do Movimento Negro Unificado, de fábricas, de igrejas etc. Eles vêm com uma identidade, com elementos culturais muito fortes. É um grupo popular, ocupando um espaço que foi criado para isso. A gente mantém isso. Com o Projeto Toma Lá Dá Cá, apoiamos grupos como os que geraram os atores do Bando e que continuam gerando. Esses grupos periféricos vêm ao Teatro, e nós nos propomos a ajudar a construir a identidade deles. Não tentar direcionar. É tentar interferir no sentido de fortalecer os princípios de cada grupo. Não homogeneizar, mas dar referências nossas e colocar um espelho: vocês estão certos, mas a experiência nos diz..., talvez seja mais eficiente.... Tentamos dizer certas coisas que eles podem aproveitar ou não. Esse projeto é formatado ano a ano por esse líderes dos grupos que demandam coisas, e a gente tenta atender na medida do possível. Não temos dinheiro. Não tem nenhum patrocinador por trás que mantenha isso. É o próprio teatro. Recebemos apoio do Estado para manutenção da estrutura física do teatro. Recebemos em torno de 40% dos nossos custos fixos. O restante temos que conseguir através de bilheterias e de projetos. O que é correto. O Estado não tem que bancar inteiramente. O Estado faz o que tem que fazer, independentemente de quem está lá agora. É parte das obrigações do Estado. Nós temos um papel público. Ganhamos pouco dinheiro para trabalhar aqui. Esse projeto não visa a construção de um patrimônio particular, nesse sentido, mas um patrimônio que está à disposição do público. Essa é a nossa forma de interagir. É reforçando o sentido que cada grupo desse traz para a construção de um espetáculo. Eles trazem a identidade das comunidades de onde vieram. Com todas as contradições. O fascínio pela Globo, por esse Teatro. Estão acostumados a ensaiar no quintal da casa de um dos atores, ou na igreja... Chegar a um teatro todo equipado e moderno é um sonho de consumo de qualquer grupo de teatro. Formamos uma rede de trocas de informações e de sistemas de trabalho muito rica. Um novo modo de trabalhar junto. Não é uma mão estética que está interferindo no trabalho deles. É um pensamento de um modo de fazer teatro, que está presente aqui. A idéia é segui-los, e não fazer que eles me sigam. É perceber onde eles querem chegar. E isso é muito forte, é fácil de perceber: eles têm uma convicção muito grande.

E onde eles querem chegar?

Eles querem ter voz. Chegar ao palco é ter a possibilidade de serem ouvidos. É reconstruir um modelo. No caso do Bando, por exemplo, o mais importante não é a linguagem ou o resultado estético: é ter se tornado uma referência para muitos jovens negros, independentemente do desejo que tenham de fazer teatro. Mas sabem o que o Bando, um grupo de teatro formado por negros, representa num país em que todo o referencial é branco, louro, europeu. Na televisão todos os apresentadores são louros. Não tem um referencial negro para a criança. Começar a construir esse referencial aqui nesse teatro é muito gratificante.

Há vetores temáticos na produção artística atual?

Não gosto muito de setorizar. Se eu tenho que pensar, como exercício, numa setorização da produção teatral, eu dividiria entre os trabalhos que têm um compromisso com a discussão, com a reflexão, com o avanço da sociedade e aqueles que querem distrair a sociedade desse avanço e para onde ele está nos levando.

Você gostaria de chamar a atenção para algum grupo?

Acho que esses jovens do Toma Lá dá Cá têm esse compromisso, mesmo sem ter, muitas vezes, consciência disso. A universidade deveria estimular isso nos jovens que chegam até ela. Deveriam aprender a ser o que se traduz numa palavra já tão desgastada: a ser cidadãos, pertencentes a alguma coisa. Acho que esse sentido de pertencimento tem se perdido. E por isso eu acho que é importante afirmar a identidade. Por que ela dá isso, essa sensação de pertencimento. Isso é importante, porque, se você não pertence a nada, você não tem compromisso com nada. Se essa casa não é sua, que lhe importa que ela caia. É ser parte única de um universo, de um todo, sem se sentir diluído, diminuído. Ao contrário, é se sentir que você é parte. É sair do um e ir para o todo.

Ser baiano e brasileiro. Há confronto?

Acho que é diferente, mas não há confronto. Há muitos ciúmes entre as regiões do Brasil. Mas a Bahia são várias nações. Recôncavo, sertão, sul... Até a comemoração da Independência, a gente tem um dia especial. A Independência, na Bahia, foi depois da Independência do Brasil, porque aqui houve luta de fato, não houve acordo. Isso também não nos faz melhor ou pior. Nos faz diferentes. E isso tudo se reflete na produção cultural. As diferenças e as riquezas dessas diferenças. E os países devem comportar essas diferenças.

 

 

Apoio:

Quem Faz Salvador
Enciclopédia de Lideranças Culturais

 

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