"A situação da cultura popular é muito parecida com a da mata atlântica: ambas estão sendo devastadas a passos largos."

 
 
 

 

 

 

Fred Dantas
Maestro


Nas suas atividades, como a diversidade cultural da Bahia se faz presente?

A situação da cultura popular é muito parecida com a da mata atlântica: ambas estão sendo devastadas a passos largos. Desde Mário de Andrade se anuncia que a cultura popular está na mira da indústria cultural. Apesar disso, a Bahia ainda tem bumba-meu-boi, reizado, marujada, zambiapunga, nego fugido... tem capoeira e maculelê do Recôncavo, do Sertão tem pau de fita, trança fita, rezas, macumba de todo tipo, rodas de São Gonçalo, romarias... Essas tradições se organizaram num período em que o povo brasileiro esteve mais descansado. Com a influência ou a coordenação da Igreja Católica, organizaram-se festas, geralmente para um santo, ou prevendo algum tipo de devoção. Acredita-se que a divindade gosta de alegria. Se você pede a Deus uma casa e consegue, tem que dar uma cachaçada para demonstrar o quão você é grato. Chama seus amigos, reza tantas Ave-Marias, tantos Pai-Nossos, reza para seu orixá ou caboclo - além de Cristo, Maria Santíssima, São Bartolomeu, São Benedito, também tem um cantinho para Pena Branca, Gentio, Boiadeiro... Cumprida essa parte, se diz "ô gente, vamo comê uma leitoazinha, tomá uma!" e se dança. Tem outros rituais, como cristãos de mouros, derivados de autos medievais. Eu tenho viajado, gravado essas coisas. O Bahia Singular e Plural é um projeto restritivo, seleciona os mais bem gravados, mais animados, mais "importantes" culturalmente. Com o material bruto das viagens, pretendo fazer o Arquivo Sonoro Baiano. Seriam uns 200 CDs demonstrativos, só para algumas instituições e pessoas, sobretudo deixar disponível no IRDEB para pesquisadores. Na Oficina de Frevos e Dobrados, estou desenvolvendo um trabalho de educação musical com crianças carentes. E tem a Orquestra Filarmônica Ambiental, lá no meio do mato, um projeto que vai fazer cinco anos.

Como o senhor vê a identidade cultural de Salvador e da Bahia? Qual é a "cara da Bahia", se é que ela tem uma?

A indústria da grana explora e mata. Eles mataram o samba, que surgiu como uma coisa contestatória. Hoje é a mulher com a bunda de fora, aquele negócio ostentatório, sem poesia. O meu discurso passa pela liberdade sexual, pelo prazer. Por isso mesmo, eu me insurjo contra a mercantilização do sexo. A Bahia se recuperou na década de 70, criando os blocos afro. Em vez das mulatas de Sargentelli, surgiu a Deusa de Ébano, a mulher sensual e forte. Houve uma revolução negra em Salvador, até os anos 90. A partir de "requebra, requebra, sim..." as coisas foram mudando e virou essa putaria. A mulher negra foi mais uma vez aviltada, só escapam as malucas do reggae. As que quebram representam o fim da cultura negra. A bunda é a representação dessa política de arregaçamento, aquela posição de galinha é a posição do Brasil na globalização. O negro é mercadoria de ostentação, musculosa, Bragaboys, aquele negócio de academia, "vou dar porrada", estilo Massaranduba, o "pitgay". O outro lado é querer ser pop americano. Desde que os supermercados da Bahia foram comprados por holandeses, a música anda alta demais e controlada pela rádio Antena 1, que só toca música estrangeira. Então tem a mulher da bunda, o negro pitgay e, quem não quer ser assim, a Antena 1, ou música gospel, crente. As cantoras americanas gritam como histéricas, querem implantar isso no Brasil.

Diante dessa realidade, qual deve ser o posicionamento dos artistas?

Devemos procurar um caminho em que seja possível fazer essas músicas baianas, sem que seja somente "quebra pra lá, quebra pra cá". Na região do médio São Francisco, por influência de uma pastoral de lá, do bispo Dom Jairo, que briga contra a transposição do rio, tem músicas assim: "cadê o peixe, pescador / de fome não deixe o seu amor / cadê o peixe, pescador / o rio está secando...". Está lá a batida, a música étnica brasileira, denunciando um crime ecológico. A outra coisa é: "ai se não tivesse o seu amor / o que seria de mim / ô Rosa...". Está se falando da beleza de uma mulher, sem dizer "Rosa, descarada!". Tem caminhos para fazer, falar do amor, falar dos problemas... as pessoas sabem como. Estive viajando e vi uma festa no interior. As pessoas de bem não vão quebrar. Fica um cara boçal dando ordem, "agora todo mundo abaixadinho assim!", mas quem vai lá para frente é o lúpen social, os filhos do milagre brasileiro - como diz o povo, não nasceu, veio a furo.

Que grupos representam o que está acontecendo de realmente interessante, em termos culturais?

Nessa cleptocracia que virou o Brasil, começaram a proliferar ONGs e instituições como a OAF, Aldeias SOS, Irmã Dulce, Fred Dantas versão ambiental... Nessas organizações todas sempre tem um coral, uma banda, uma aula de música. Antigamente era só cantando aquelas músicas padronizadas, mas agora estão despontando composições próprias, desses grupos de auxílio humanitário. É só o que me ocorre, não sei se por estar mexendo com isso. Está se apresentando agora uma banda só de latas chamada Boca de Lata, de Ituberá, que foi feita nesse espírito; tem uma daqui chamada Bagunçaço. Já aquela coisa do Candeal, me parece um centro de formação de artistas, egos inflados. Tenho inveja daquilo ali, por que corre muito dinheiro, eu queria 10% para fazer minhas coisas.

Qual seria o papel das escolas de arte, da UFBA e dessa educação informal?

A UFBA sempre produziu profissionais de altíssimo nível, por que foi criada com Edgar Santos, Anísio Teixeira, José Silveira, Villa Lobos... Pessoas que viveram com o coração inchado de pensar na condição humana. Lá se recebe uma instrução que nenhuma escola particular de música vai dar, por que quer o lucro. Tem áreas como a improvisação, a pesquisa e o experimentalismo, que são suicídio mercadológico - aí entra o Estado. Eu fui aluno de Ernest Wilmer, de Lindemberg Cardoso, de Walter Smetak. Hoje, no meu modo tacanho e brejeiro de reger instituições, tem a educação informal que eu adquiri no interior, com Mestre João, mas o rigor científico, a honestidade final, foi com esses grandes professores. Nunca paguei aula de música, saí de uma filarmônica e fui acolhido pelo manto generoso da UFBA.

 

 

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