Fafá Daltro

David Iannitelli

"identidade é o seu movimento individual, particular (...)Cada pessoa, por si, tem um assunto particular com o mundo e consigo (...) A Bahia é um paraíso infantil (...)tem um otimismo imediatista"

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Fafá Daltro e David Iannitelli
professores da Escola de Dança da UFBA


É diferente estar na Bahia?

David - Tenho sete anos aqui. Minha experiência aqui me revela um lugar energizante e um paraíso de opções. Um paraíso infantil. As crianças parecem mais felizes que os adultos, mas elas podem cair em uma miséria muito mais aguda também, porque não têm as defesas. Na Bahia também é assim. Você tem tudo de primeiro mundo e tudo de mundo nenhum. A Bahia é estimulante e cheia de possibilidades. E a realização de alguma coisa dentro desse universo de possibilidades traz enormes desafios. É uma faca de dois gumes. Há uma brutalidade muito grande porque os cuidados básicos com o ser humano, saúde, alimentação, educação, previdência social... Não existe isso. Não tem uma base. Isso é uma barbaridade. Apesar de todo mundo andar com telefone celular, os impostos não são utilizados para garantir essa coisas. É um pouco de tudo e nada se completa. Então, é um paraíso para mim que tenho trabalho. Mas vejo que se pode morrer de fome na Bahia.

Criar na Bahia é diferente?

David - É. Uma diferença muito grande porque tem um otimismo imediatista que eu acho que vem da luz do sol. Não vou criar uma dança sobre a alienação existencial. Mas posso criar uma dança sobre a saudade, a nostalgia, o amor. Que são coisas muito fortes aqui. A celebração à vida, os ritmos africanos... Outra coisa é o imediatismo que tem a ver com a disciplina. As pessoas tendem a se dispersar, perdidas nessas possibilidades. Não aprofundam, não investem em projetos que podem ter desdobramentos futuros. Não estou falando de limites estruturais. É a perda de foco. As pessoas vão se envolvendo em várias coisas. E talvez seja inevitável como o sol. Eu não sei exatamente porque. A sociabilidade, a facilidade de desenvolver relações. A vida fica mais fácil, tem muita coisa a ser explorada, a ser descoberta. Então, porque se ligar em uma coisa só? É difícil encontrar esse por quê. É muito complexo.


Fafá - O processo de criação é o mesmo em qualquer lugar do mundo em que eu esteja. Os estímulos é que são diferentes. A Bahia é um lugar muito rico em talentos natos. Estamos em busca disso. Por isso nós estamos com um projeto de pesquisa chamado Impulso Artístico em Lauro de Freitas. Essa experiência mostra o quanto a dança é natural e particular em cada pessoa. Com essa pesquisa estou em busca da dança de cada um, a sua identidade e como você vai mostrar isso em movimento.

E se falarmos da busca de um conceito que leva à coreografia...

Fafá - Cada um busca em si o seu impulso interior. Eu não jogo um conceito para eles. Eu espero que eles achem dentro de si o que querem dar para o movimento. Trabalhamos um método natural de coreografar. É você estar dançando normalmente e criar a partir disso. Você busca em você idéias, princípios e significados que possam ser transferidos para a dança.

David - Quando eu cheguei aqui, dança, coreografia eram coisas a serem trabalhadas com pessoas treinadas para serem realizadas em um palco. Você limita seu trabalho a pessoas que já têm experiência com a dança e só mostra o trabalho para pessoas que podem ir ao teatro. Acredito que coreografia é uma qualidade natural ao movimento. Se você vê coreografia como a qualidade de interação entre coisas, não se prende a dançarinos treinados. Então já começa pela democratização da dança. Nem todo mundo tem tempo para treinar, mas muitos têm o desejo, acham atraente a idéia de poder dançar. A outra coisa é onde você mostra: qualquer praça, colégio hospital. Como pagar? Fazendo um serviço de propaganda de objetos serviços. Levando o nome de pessoas que estão na parceria com você, que patrocinam o seu trabalho e mostrando para platéias que existem e não têm acesso à movimentação cultural. Todos fazem parte do processo. É a democratização da dança.


O que é identidade cultural para você?

Fafá - Falando em dança, identidade é o seu movimento individual, particular, dentro do seu processo de criação. Que não estão separadas de um contexto social. Tudo que está ao redor interfere no movimento individual. As nossas danças são criações vindas de todas essas interferências externas que a gente tem. Aí a gente, diante disso, tira o que é possível, o que é melhor para se expressar.

David - Sabe que não sei... Agora, tem alguma coisa aí... Desde que cheguei aqui, dizem que estou virando cada vez mais baiano. Tem alguma coisa identificável dessa identidade baiana. Tem a ver com os padrões de reação às coisas. O tempo e a qualidade de reação. Se você responde violência com violência ou violência com tranquilidade. Se você identifica tranquilidade com vazio ou com prazer. É importante perceber isso. Quanto ao baiano, ele é positivo e tem um otimismo imediatista. O baiano não fica feliz porque vai acontecer alguma coisa boa, não existe esse pensamento do futuro, do que vai chegar, do que deve-se alcançar. Acho que isso tem a ver com a instabilidade. É uma capacidade de lidar com problemas imediatos; e isso enfraquece uma visão ampla, de passado e futuro. Se está chovendo, então vamos consertar o telhado. Não existe planejamento. Nos Estados Unidos, de onde eu venho, é o extremo oposto, que também não é bom. As pessoas não vivem no presente. O baiano é comunicativo, aberto, inclusivo, generoso, flexível, tolerante ao ponto de gostar da diferença. Acho que há uma atração pelo diferente. Há uma liberdade muito grande também. Não é um lugar cheio de leis absurdas. No meu país é proibido tomar cerveja na praia, imagine! (ri). Você está sempre sendo pressionado por leis. O problema é que junto com a liberdade tem também muita irresponsabilidade. Há um abuso dos direitos individuais que gera as situações de crime. A tendência do que chamam de desenvolvimento é fechar, restringir. Seria muito importante isso não acontecer aqui. Que o brasileiro e o baiano em particular tenham essa consciência de si que é difícil de encontrar em qualquer outro lugar o mundo que eu conheço. Tem a ver com a riqueza natural. É a possibilidade de evolução do ser, menos ligada às questões materiais. Não cair nessa coisa do "primeiro mundo" de legalizar, padronizar as liberdades humanas.


Por que o trabalho comunitário? Como vocês chegaram lá em Lauro de Freitas?

Fafá - Agora foi com o UFBA em Campo (Programa de Extensão universitária, concebido e realizado pela Pró Reitoria de Extensão da UFBA desde 1997, que prevê a total inter-relação entre universidade e comunidade). Já tinha realizado trabalhos em comunidades mas não com tanto tempo de convivência como está sendo agora com esse grupo. A idéia é de tirar o academicismo de dentro dessas quatro paredes e botar lá fora. Muitas vezes a gente fica preso ao trabalho em sala de aula e a realidade é que a gente não consegue atingir as pessoas lá fora com o trabalho que a gente faz aqui dentro. Fica sempre sendo um trabalho muito particular. De mim para o aluno ou de mim para mim. Então, a idéia é levar essa experiência que a gente para pessoas que não têm acesso a esse tipo de trabalho. Eles não têm a linguagem técnica, específica do bailarino acadêmico que a gente encontra aqui, mas eles têm uma dança nata. Totalmente particular, individual. São pessoas que dão respostas a tudo que a gente pede. São disponíveis, não têm preconceito da movimentação, não têm vergonha. Os alunos em geral são muito tímidos, pela própria educação que eles têm. Lá não, a gente encontra algo com significados totalmente diferentes, sendo que lá temos respostas muito mais imediatas, espontâneas.

Você pode falar mais da criação a partir dessa espontaneidade?

Fafá - Se você quer uma criação mais profunda, se você quer falar com um movimento da sua alma, você deve estar despojado de todas as coisas que te limitam. Falar em espontaneidade é falar em originalidade. Se você é espontâneo com seus movimentos você vai passar idéias que são suas e não repetições de outras pessoas. O mais comum é repetir alguma coisa que a pessoa lhe dá. A gente quer justamente que cada um mostre o seu movimento. Tanto que a gente trabalha com improvisação de cena. É quebrar o paradigma da codificação. A gente dá uma idéia e a partir daí eles criam e chegam aos movimentos mais originais possíveis. E vamos evoluindo em cima disso, transformando isso. Hoje não trabalho mais com códigos de repetição, tenho códigos de intuição. Estou nesse momento da busca da espontaneidade. Quanto mais treino a gente tem em estar criando coisas sem regras, usando princípios, a gente pode evoluir como quiser.

Como essa prática volta para as quatro paredes? Como ela transforma a prática do ensino de dança?

David - Na hora que eu consigo me liberar das restrições do teatro formal, das restrições de dançarinos "bem treinados" eu consigo uma outra comunicação através da coreografia. Expressão de coisas que eu não conseguia perceber. Ver com o coração o significado das coisas, das coreografias. Isso que passo para meus alunos. A coreografia não como um movimento pessoal do artista, mas natural. É a evidência de um desejo. De uma forma de organização dos movimentos que agrada o criador, o observador, o participante. É uma forma de harmonizar tudo que move. Pode ser gente, pode ser corpo, a sociedade... É uma possibilidade de ouvir uma maneira alternativa de harmonizar isso tudo. Criar algo agradável e não caótico. Conter o excesso de energia que cria, o excesso de funcionalidade. Encontrar a beleza.

Essa questão da baianidade que está sempre em discussão. Como é isso para você?
Fafá - Acho que cada pessoa tem o seu próprio jeito. Não só o baiano ou por ser baiano. Cada um tem uma maneira de ser. Não vejo como uma marca. Todo ser humano tem a sua maneira de ser e de se expressar. Eu sou baiana e não me vejo enquadrada. Tenho meu próprio suingue, tenho a minha forma de ser natural. Acho que é mais por aí. E cada um é original e particular. Não quero identificar suingues....


Como você vê a produção em dança aqui em Salvador?

Fafá - É muito precária. Os empresários não acreditam, se queixam que não recebem nenhum projeto de dança. Há uma infinidade de grupos de dança, de excelente qualidade, mas não existe uma produção real a partir disso. A gente vê a produção sempre ligada aos mesmos grupos. Quando vem de fora, são sempre os mesmos grupos. E a gente tem milhões de outros grupos trabalhando às vezes com coisas muito mais interessantes. Tem grupos que trabalham essencialmente movimentos, com idéias originais e muito mais ricas do que esses grandes grupos que estão em evidência, que são vistos como melhores. Para mim não existe o melhor do mundo, o melhor da Bahia... o que existe são trabalhos interessante e significativos que deveriam ser valorizados e não são.

Para resumir. Então, você não liga muito para a busca dessa marca identitária...
Fafá - Não gosto de levantar esse tipo de bandeira. Cada pessoa, por si, tem um assunto particular com o mundo e consigo. Cada um tem que investir no seu potencial, ser multiplicador de idéias interessantes e significativas para alguém. Tem uma imagem de que dança na Bahia é só afro. Não é. Os que detém o poder da palavra estão dizendo isso e não é verdade. Existe uma infinidade de grupos de dança na Bahia e cada um tem o seu jeito.

Você gostaria de citar algum grupo?

Fafá - No próprio UFBA em Campo tem muita coisa interessante. Esses grupos não são vistos. São coisas isoladas. Não existe um olhar da mídia em cima deles. Pra melhorar só um grande trabalho educacional de mostrar esse outro lado. Quem trabalha com grupos alternativos tem muita dificuldade de sobreviver. Lá em Lauro de Freitas nós estamos dando continuidade ao trabalho com o Grupo Cactus. O UFBA em Campo terminou e a gente continua lá. A gente acredita que alguns daqueles meninos vão ser multiplicadores da nossa idéia. Hoje já tem gente querendo fazer vestibular para dança, outros para Teatro. São caminhos que se abrem para eles e para nós.

 

 

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