"...durante muitos anos, falou-se em uma democracia racial e uma aparente falta de preconceito, como se a convivência entre as raças fosse muito pacífica, e sabemos que isso é um conceito bastante hipócrita."

e-endereço:
fcjamado@svn.com.br

 
 
 

 

 

 

Myriam Fraga
poeta, escritora e diretora da Fundação Casa de Jorge Amado em Salvador


Que lugar é a Bahia para você? Esse lugar tem uma identidade própria?

Primeiro, a gente tem que discutir o que é identidade. No meu modo de ver, identidade é a marca que distingue: uma pessoa, um produto, um país. Como se fosse a impressão digital: ninguém repete, cada um tem a sua. A identidade da Bahia seria então essa marca, esse sinal, que a diferencia de todos os outros lugares, de todas as outras culturas. O que nós temos que ver é se existe essa diferença e onde está essa diferença. Na própria cultura e nas suas manifestações, na posição geográfica, na população ... onde estaria essa identidade?

E existe?

Vamos pensar em Salvador. No estado da Bahia, e mesmo no Brasil, esta cidade ocupa uma posição muito peculiar. Ela se diferencia nos costumes, na miscigenação racial, na culinária, na posição geográfica... Mas até que ponto podemos fazer com que essas diferenças se tornem uma marca própria, a sua identidade? Onde encontrar o que é positivo nessas diferenças e o que é negativo? Vamos pensar, primeiro, em sua localização. A cidade do Salvador foi resultado de um projeto de colonização que partiu de Portugal. O sítio foi escolhido como um sítio de defesa. Uma cidade que fosse ao mesmo tempo uma fortaleza. Daí ela ser colocada em cima de uma montanha, facilmente defensável. Assim, nasceu para ser o centro do poder colonial, de acordo com um traçado previamente planejado. As ruas, as praças, as igrejas, toda a parte administrativa, tudo foi edificado seguindo uma planta e está aí até hoje, no que chamamos Centro Histórico e que, até bem pouco tempo, ainda era o centro nervoso da cidade que, a princípio, era cercada de muros. Depois, essa cidade foi se espraiando, além de suas portas, primeiro pelas vias de cumeada até atingir os vales, depois, seguindo a linha das praias, tanto para dentro da baía como para o rumo do litoral norte. Pra mim, é complicado falar dessas coisas porque o meu pensamento é muito mais poético do que científico. Trabalho mais com analogias do que com certezas. Pra mim, esta cidade é uma ilha, cercada de mar, uma ilha de luz, e sofre uma influência muito grande desse excesso de azul, dessa beleza estonteante. É uma paisagem belíssima, a da Baía de Todos os Santos, talvez uma das mais belas do mundo, com uma vegetação luxuriante e que deve ter encantado, há séculos atrás, os que aqui vieram pela primeira vez. E até hoje encanta. Por isso, eu temo muito por esse espaço, a cidade que vai sendo destruída pelo chamado "progresso", com aspas mesmo, porque, se ela foi planejada em seu nascimento, depois foi sendo aos poucos abandonada à própria sorte, e o que se vê hoje é que o planejamento urbano deixa muito a desejar, mesmo agora com novas avenidas, novos espaços... Às vezes me dá a impressão de que a cidade está crescendo como se fosse um câncer que vem corroendo sua suposta beleza, seus espaços verdes, suas árvores, tudo sendo destruído pela doença da modernidade, da luta pelo progresso a todo custo e também porque, de repente, ela se transformou em uma metrópole e talvez não estivesse preparada para isso. Em 50 anos, a cidade passou de 500 mil habitantes para 2 milhões. É um impacto, e nós temos de pensar que a cidade não foi preparada para isso. Foi uma verdadeira agressão.

O que exatamente caracterizaria essa agressão?

Me parece um assunto bastante complexo e não sei se vou conseguir situar o meu pensamento. Uma transferência das populações do campo para a cidade, a sedução do urbano com suas promessas de maiores oportunidades, com o conseqüente aumento de uma população de baixa renda, de baixa escolaridade, de baixo poder aquisitivo e que não foi orientada em nenhum sentido. A cidade, de repente, ficou sitiada por um cinturão de pobreza, que faz com que ela se sinta muito degradada. Eu não vejo como escapar disso, como fazer com que essa população tenha acesso a certos bens, como moradia, saúde, lazer, e principalmente, educação, que deveria ser a meta principal de todas as reformas. Não falo só de escolaridade, mas de uma educação verdadeiramente voltada para a cidadania, uma pedagogia orientada no sentido da compreensão do outro e do respeito à cidade como local de convivência.

O que a senhora chama de compreensão da cidade? É o aspecto cultural da formação deste lugar?

É o conhecimento de sua origem, de sua história, de seus erros e acertos, de suas possibilidades. Só se ama realmente o que se conhece, e o respeito a si mesmo e ao seu espaço nasce desse conhecimento, desse exercício cotidiano que podemos chamar de cidadania. Do ponto de vista da população, Salvador talvez seja uma das cidades mais miscigenadas do Brasil. Primeiro o contingente que já existia da população autóctone, dos índios que aqui moravam, a seguir os portugueses que aqui vieram. Sem entrar no debate sobre se foi dizimada ou absorvida, o fato é que da população indígena quase não sobraram vestígios na cidade, a não ser na denominação de logradouros, na toponímia, na culinária.... Depois, chegaram os escravos africanos de várias etnias, de várias procedências. E os outros imigrantes: galegos, italianos, espanhóis... Desses, dos europeus, realmente, a contribuição mais forte é a portuguesa. As outras não chegam a ter um grande peso na formação de nossa cultura. Pelo menos não tão evidentemente quanto os portugueses e os africanos. A cultura que veio da África também é muito forte e está se tornando preponderante em certos aspectos. Agora, essa identidade que a gente busca, será que ela existe mesmo, ou é uma fantasia, algo que a gente desejaria que fosse? Porque, durante muitos anos, se falou em uma democracia racial e uma aparente falta de preconceito, como se a convivência entre as raças fosse muito pacífica, e sabemos que isso é um conceito bastante hipócrita. Apesar da discriminação ser mais econômica do que racial, tanto que aqui se costuma dizer que o negro embranquece à medida que enriquece, e, aparentemente, ninguém discrimine um negro que atingiu extratos sociais ou culturais mais elevados. Um artista, um professor, um profissional liberal de sucesso, uma pessoa envolvida com a cultura, com a política, provavelmente não terá maiores problemas de relacionamento por causa de sua origem. Mas a grande massa ainda tem aquela coisa do olhar desconfiado. E, por outro lado, como o negro sempre foi visto como o outro, o inferior, ele tem que lutar até para vencer isso dentro dele mesmo e sentir orgulho de si. Ele precisa se relacionar com ele mesmo, se conhecer, vencer a síndrome da escravidão. Por isso, eu falo do conhecimento. À medida em que a gente for conhecendo um pouco mais da cultura de outros povos, irá também descobrindo que não existem culturas inferiores ou superiores, apenas culturas diferentes, que podem conviver harmoniosamente e construir coisas juntas, uma com a outra, e não em oposição. Me sinto muito temerosa diante dessa maneira de agir contra alguma coisa. Acho que deveria ser em favor de. Preocupo-me com a transformação dessa oposição em ódio ostensivo. É a pior coisa que pode existir em um país. Principalmente aqui, onde as famílias, de um jeito ou de outro, estão ligadas, ou por laços sangüíneos ou por amizade, a várias etnias. Então, a minha preocupação é que essa questão racial e cultural não se transforme em uma coisa de oposição ao outro. Nós somos filhos de pais diferentes. Temos um pé na África e um pé na Europa. Não podemos esquecer isso não. A gente tem é que ensinar uns aos outros a força, a beleza, que essas duas culturas têm e tentar criar a partir daí novas formas de expressão cultural.

A senhora, então , questiona essa onda do "Se é negro é lindo"!

Um pouco, também... Porque todo mundo é lindo. Mas agora, talvez isso seja necessário, nesse momento, para que as pessoas passem a ter orgulho de sua origem africana e possam fortalecer a auto estima. É importante, no momento, a afirmação de que ser negro é lindo. Isso é importante, para o negro, se achar lindo, porque reforça seus próprios valores, sempre em oposição, em situação de suposta inferioridade em relação aos padrões da estética européia. No momento em que se começa a pesquisar sobre a África, como um continente de múltiplas realidades, com uma herança histórica e cultural importantíssima, e isso é levado para pessoas que se acreditam desprovidas de tudo, porque não sabem que isso existe, se acham apenas pessoas inferiores, você cria um orgulho da sua identidade, da sua origem. De certo modo se fez isso também em relação aos portugueses, a partir da independência, dizendo que português era burro, que não tomava banho, chamando de maroto, pé de chumbo, etc. porque nós, brasileiros, recém libertados, naquele momento, precisávamos disso. De investir contra os portugueses para nos afirmarmos como povo, como identidade. Então, acho que esse processo pelo qual a população afro-brasileira está passando, de afirmação de sua identidade, é importante. Só precisamos cuidar para que isso não se transforme numa oposição sistemática. Um racismo pelo contrário. Cada etnia tem suas coisas boas e ruins. Talvez sejamos um laboratório dessa mistura, escolhidos pelo destino como ponto de partida de uma nova civilização. Inclusive porque todas as civilizações mediterrâneas têm um umbigo comum, e a África, a Grécia, a Itália, todos esses povos conviveram estreitamente durante séculos em pé de igualdade. Existiam reinos poderosos na África. Só que, por um caminho altamente perverso, essa população veio parar aqui numa condição de humilhação muito grande, e essa foi a memória que ficou. Não a memória de um tempo mítico, de uma herança cultural a preservar, mas a memória da humilhação e da derrota. Esse talvez seja outro aspecto a considerar, porque a memória coletiva é um fator de união, de auto estima.

Como ficaria esse estímulo à expressão do negro em termos de políticas culturais aqui em Salvador?

Em primeiro lugar, acho muito importante o reconhecimento de sua própria identidade: de suas origens, de sua história, da arte de seus antepassados. Com seriedade, sem demagogia, da mesma forma que se ensina a história que diz respeito às culturas européias. Não como uma coisa à parte, mas como uma contribuição importante à formação de nossa cultura, da cultura brasileira, que é uma fusão de todos esses elementos de sua formação. Incentivar a produção de projetos culturais que venham a expressar essa raiz africana sem paternalismo, sem aquela de vamos aplaudir só porque é afro e está na moda. Bem, eu não vejo porque aceitar coisas de qualidade inferior, apenas porque tenham a ver com cultura africana, quando se pode fazer uma arte extremamente refinada utilizando-se esse potencial que me parece ainda não convenientemente explorado, a não ser por raros artistas de grande talento, dos quais vou citar apenas três aqui na Bahia: Rubem Valentim, Mestre Didi, e Emanoel Araújo. Eu vou citar aqui o Mestre Didi, um africano por ascendência, uma pessoa intimamente ligada ao candomblé, que faz uma arte absolutamente refinada, aceita em qualquer lugar do mundo, é um homem culto, que vive a sua cultura intimamente. Acho a arte que ele faz absolutamente moderna, no sentido de que está inserida na cena prática cotidiana, e é boa porque é boa, e não porque é feita por um negro.

E como chegar a essa classificação valorativa?

Você não aceita qualquer coisa. Aceita o que é melhor, segundo um cânone. Agora, como chegar a esse cânone? Eu me pergunto e realmente não tenho resposta. Como estabelecer esse cânone e se é certo ou não ter esse cânone para as artes. Quem é que diz o que é bom e o que é ruim. O que é bom para mim às vezes não é para outra pessoa. Mas existe essa possibilidade de se estabelecer um cânone, que aliás não é imutável. Do ponto de vista da literatura ocidental, por exemplo, já está mais ou menos estabelecido quem são os melhores de uma determinada época. Para a cultura africana, que é ágrafa, muito mais oral, é muito difícil estabelecer um cânone literário, por exemplo. Mas, talvez, seja uma questão de desconhecimento. Por exemplo: na literatura ocidental, grandes obras foram criadas em cima dos mitos religiosos. As lendas africanas também são de grande riqueza. São mitos enraizados no tempo, que também poderiam vir a inspirar grandes obras. Mas como a cultura africana , digo do ponto de vista da literatura, é basicamente constituída de uma tradição oral, isso não ocorre. Daí a grande importância das religiões que ajudaram a preservar essa herança cultural riquíssima, como o candomblé.


Aí a gente entra na questão da cultura de massa....

Que é uma questão seríssima, mesmo porque envolve juízos de valor, que são sempre muito relativos. O que é bom para uns é péssimo para outros. Na música popular, por exemplo, onde a coisa fica mais visível, o que mais vende, portanto, o que é mais consumido, é o que possivelmente nós achamos que é péssimo. Em termos de valor, quando se trata de arte, nem sempre a maioria tem razão. Diria mesmo que quase nunca tem. Talvez porque a grande arte seja sempre inquietante, cause uma estranheza que não atrai os de paladar menos apurado. Porque arte é emoção, mas é também conhecimento. Quando eu leio um texto, eu sei que tem que ter atrás dele uma consciência do que está sendo escrito. Poesia mesmo: algumas pessoas acham que para fazer um poema é só ter um bom sentimento, uma idéia maravilhosa, e jogar aquilo no papel. Não funciona. É preciso aprender a ver a língua como instrumento.

Buscando essa relação entre manifestação artístico cultural e identidade, por menos que a gente queira, há uma hegemonia do que está à mostra por essa indústria da cultura. Como a senhora vê e até se relaciona com isso como criadora?

A chamada industria cultural é manipuladora, porque o seu fim é o lucro imediato. O que não vende, o que não fatura, é deixado de lado. Aqui na Bahia, a industria cultural está criando um estereótipo, que é essa questão da baianidade, de uma terra maravilhosa, o baiano alegre, um povo feliz, que trabalha sorrindo. Você tem que viver sambando o tempo todo, comendo acarajé no café da manhã, não é isso. Mas se vende essa imagem lá fora. O que me irrita muito é que a gente tem de conviver com essa imagem de que baiano vive deitado na rede.... É tudo muito folclorizado ... A cidade é muito densa, muito forte, para que seja vulgarizada com essas coisas. Esta cidade, Salvador, marca uma civilização, um mundo novo que está surgindo, com seus contrastes, suas incoerências. Eu tenho uma relação muito intensa com esta cidade. Mas esta cidade tem muitos extratos... Até a minha visão, ela de vez e quando é muito conturbada. Eu amo e às vezes eu odeio. Essa idéia de Bahia tão forte, às vezes até mitológica, muito viva. Quase como uma personagem com a qual eu dialogo o tempo todo. Eu não escrevo sobre a cidade, eu escrevo contra a cidade, na cidade, vivendo a cidade. Ela tem muito essa força... E ainda a mística da cidade. As pessoas se apaixonam por ela. E ao mesmo tempo, me pergunto: será que isso existe ou é imaginação do meu inconsciente? Essa relação mítica, totêmica ...

Essa imagem criada.... Como é que seria isso? Quem cria isso?

Uma cidade, como Vênus, nascendo da espuma do mar, uma cidade mágica, mística, de uma religiosidade perturbadora e ao mesmo tempo pagã. Encantando e inspirando artistas e escritores justamente por sua diversidade, criando uma nova forma de expressão cultural muito peculiar, que talvez pudesse ser vista até como uma busca da identidade de que falamos no princípio. Mas, de repente, a mídia resolveu investir fundo nessa idéia de uma Bahia exótica e embarcou nessa super valorização do que acha que é cultura afro e que agrada muito, que vende lá fora por causa do exotismo. Quem cria é a mídia, que é dos brancos. O branco cria esse mito do exotismo ligado ao negro. E, de certo modo, isso me parece uma projeção muito preconceituosa e extremamente redutora. O baiano é muito preguiçoso, não trabalha muito, vive na rede.... Porque o baiano faz isso tudo? Porque é o baiano que tem sangue negro na veia. E o negro é o que canta, é o que dança... é o que trabalha cantando... Talvez trabalhassem cantando para suportar o trabalho, para fugir de uma situação insuportável, para preservar sua identidade. Acho culturalmente muito perigoso esse marketing da terra da felicidade, carnaval 365 dias por ano... Isso acaba abafando outras manifestações artísticas. Só o que dá mídia, é um tipo de música, é um tipo de instrumentação, e o resto vai ficando abafado, um pouco fora de foco.

 

Apoio:

Quem Faz Salvador
Enciclopédia de Lideranças Culturais

 

.



[ voltar para o início ]
[voltar para o índice da semana 4]


.. direitos ® UFBA .. | .. visual: pérsio ..