Que lugar
é a Bahia para você? Esse lugar tem uma identidade
própria?
Primeiro, a
gente tem que discutir o que é identidade. No meu modo de
ver, identidade é a marca que distingue: uma pessoa, um produto,
um país. Como se fosse a impressão digital: ninguém
repete, cada um tem a sua. A identidade da Bahia seria então
essa marca, esse sinal, que a diferencia de todos os outros lugares,
de todas as outras culturas. O que nós temos que ver é
se existe essa diferença e onde está essa diferença.
Na própria cultura e nas suas manifestações,
na posição geográfica, na população
... onde estaria essa identidade?
E existe?
Vamos pensar
em Salvador. No estado da Bahia, e mesmo no Brasil, esta cidade
ocupa uma posição muito peculiar. Ela se diferencia
nos costumes, na miscigenação racial, na culinária,
na posição geográfica... Mas até que
ponto podemos fazer com que essas diferenças se tornem uma
marca própria, a sua identidade? Onde encontrar o que é
positivo nessas diferenças e o que é negativo? Vamos
pensar, primeiro, em sua localização. A cidade do
Salvador foi resultado de um projeto de colonização
que partiu de Portugal. O sítio foi escolhido como um sítio
de defesa. Uma cidade que fosse ao mesmo tempo uma fortaleza. Daí
ela ser colocada em cima de uma montanha, facilmente defensável.
Assim, nasceu para ser o centro do poder colonial, de acordo com
um traçado previamente planejado. As ruas, as praças,
as igrejas, toda a parte administrativa, tudo foi edificado seguindo
uma planta e está aí até hoje, no que chamamos
Centro Histórico e que, até bem pouco tempo, ainda
era o centro nervoso da cidade que, a princípio, era cercada
de muros. Depois, essa cidade foi se espraiando, além de
suas portas, primeiro pelas vias de cumeada até atingir os
vales, depois, seguindo a linha das praias, tanto para dentro da
baía como para o rumo do litoral norte. Pra mim, é
complicado falar dessas coisas porque o meu pensamento é
muito mais poético do que científico. Trabalho mais
com analogias do que com certezas. Pra mim, esta cidade é
uma ilha, cercada de mar, uma ilha de luz, e sofre uma influência
muito grande desse excesso de azul, dessa beleza estonteante. É
uma paisagem belíssima, a da Baía de Todos os Santos,
talvez uma das mais belas do mundo, com uma vegetação
luxuriante e que deve ter encantado, há séculos atrás,
os que aqui vieram pela primeira vez. E até hoje encanta.
Por isso, eu temo muito por esse espaço, a cidade que vai
sendo destruída pelo chamado "progresso", com aspas
mesmo, porque, se ela foi planejada em seu nascimento, depois foi
sendo aos poucos abandonada à própria sorte, e o que
se vê hoje é que o planejamento urbano deixa muito
a desejar, mesmo agora com novas avenidas, novos espaços...
Às vezes me dá a impressão de que a cidade
está crescendo como se fosse um câncer que vem corroendo
sua suposta beleza, seus espaços verdes, suas árvores,
tudo sendo destruído pela doença da modernidade, da
luta pelo progresso a todo custo e também porque, de repente,
ela se transformou em uma metrópole e talvez não estivesse
preparada para isso. Em 50 anos, a cidade passou de 500 mil habitantes
para 2 milhões. É um impacto, e nós temos de
pensar que a cidade não foi preparada para isso. Foi uma
verdadeira agressão.
O que exatamente
caracterizaria essa agressão?
Me parece um
assunto bastante complexo e não sei se vou conseguir situar
o meu pensamento. Uma transferência das populações
do campo para a cidade, a sedução do urbano com suas
promessas de maiores oportunidades, com o conseqüente aumento
de uma população de baixa renda, de baixa escolaridade,
de baixo poder aquisitivo e que não foi orientada em nenhum
sentido. A cidade, de repente, ficou sitiada por um cinturão
de pobreza, que faz com que ela se sinta muito degradada. Eu não
vejo como escapar disso, como fazer com que essa população
tenha acesso a certos bens, como moradia, saúde, lazer, e
principalmente, educação, que deveria ser a meta principal
de todas as reformas. Não falo só de escolaridade,
mas de uma educação verdadeiramente voltada para a
cidadania, uma pedagogia orientada no sentido da compreensão
do outro e do respeito à cidade como local de convivência.
O que a senhora
chama de compreensão da cidade? É o aspecto cultural
da formação deste lugar?
É o conhecimento
de sua origem, de sua história, de seus erros e acertos,
de suas possibilidades. Só se ama realmente o que se conhece,
e o respeito a si mesmo e ao seu espaço nasce desse conhecimento,
desse exercício cotidiano que podemos chamar de cidadania.
Do ponto de vista da população, Salvador talvez seja
uma das cidades mais miscigenadas do Brasil. Primeiro o contingente
que já existia da população autóctone,
dos índios que aqui moravam, a seguir os portugueses que
aqui vieram. Sem entrar no debate sobre se foi dizimada ou absorvida,
o fato é que da população indígena quase
não sobraram vestígios na cidade, a não ser
na denominação de logradouros, na toponímia,
na culinária.... Depois, chegaram os escravos africanos de
várias etnias, de várias procedências. E os
outros imigrantes: galegos, italianos, espanhóis... Desses,
dos europeus, realmente, a contribuição mais forte
é a portuguesa. As outras não chegam a ter um grande
peso na formação de nossa cultura. Pelo menos não
tão evidentemente quanto os portugueses e os africanos. A
cultura que veio da África também é muito forte
e está se tornando preponderante em certos aspectos. Agora,
essa identidade que a gente busca, será que ela existe mesmo,
ou é uma fantasia, algo que a gente desejaria que fosse?
Porque, durante muitos anos, se falou em uma democracia racial e
uma aparente falta de preconceito, como se a convivência entre
as raças fosse muito pacífica, e sabemos que isso
é um conceito bastante hipócrita. Apesar da discriminação
ser mais econômica do que racial, tanto que aqui se costuma
dizer que o negro embranquece à medida que enriquece, e,
aparentemente, ninguém discrimine um negro que atingiu extratos
sociais ou culturais mais elevados. Um artista, um professor, um
profissional liberal de sucesso, uma pessoa envolvida com a cultura,
com a política, provavelmente não terá maiores
problemas de relacionamento por causa de sua origem. Mas a grande
massa ainda tem aquela coisa do olhar desconfiado. E, por outro
lado, como o negro sempre foi visto como o outro, o inferior, ele
tem que lutar até para vencer isso dentro dele mesmo e sentir
orgulho de si. Ele precisa se relacionar com ele mesmo, se conhecer,
vencer a síndrome da escravidão. Por isso, eu falo
do conhecimento. À medida em que a gente for conhecendo um
pouco mais da cultura de outros povos, irá também
descobrindo que não existem culturas inferiores ou superiores,
apenas culturas diferentes, que podem conviver harmoniosamente e
construir coisas juntas, uma com a outra, e não em oposição.
Me sinto muito temerosa diante dessa maneira de agir contra alguma
coisa. Acho que deveria ser em favor de. Preocupo-me com a transformação
dessa oposição em ódio ostensivo. É
a pior coisa que pode existir em um país. Principalmente
aqui, onde as famílias, de um jeito ou de outro, estão
ligadas, ou por laços sangüíneos ou por amizade,
a várias etnias. Então, a minha preocupação
é que essa questão racial e cultural não se
transforme em uma coisa de oposição ao outro. Nós
somos filhos de pais diferentes. Temos um pé na África
e um pé na Europa. Não podemos esquecer isso não.
A gente tem é que ensinar uns aos outros a força,
a beleza, que essas duas culturas têm e tentar criar a partir
daí novas formas de expressão cultural.
A senhora,
então , questiona essa onda do "Se é negro é
lindo"!
Um pouco, também...
Porque todo mundo é lindo. Mas agora, talvez isso seja necessário,
nesse momento, para que as pessoas passem a ter orgulho de sua origem
africana e possam fortalecer a auto estima. É importante,
no momento, a afirmação de que ser negro é
lindo. Isso é importante, para o negro, se achar lindo, porque
reforça seus próprios valores, sempre em oposição,
em situação de suposta inferioridade em relação
aos padrões da estética européia. No momento
em que se começa a pesquisar sobre a África, como
um continente de múltiplas realidades, com uma herança
histórica e cultural importantíssima, e isso é
levado para pessoas que se acreditam desprovidas de tudo, porque
não sabem que isso existe, se acham apenas pessoas inferiores,
você cria um orgulho da sua identidade, da sua origem. De
certo modo se fez isso também em relação aos
portugueses, a partir da independência, dizendo que português
era burro, que não tomava banho, chamando de maroto, pé
de chumbo, etc. porque nós, brasileiros, recém libertados,
naquele momento, precisávamos disso. De investir contra os
portugueses para nos afirmarmos como povo, como identidade. Então,
acho que esse processo pelo qual a população afro-brasileira
está passando, de afirmação de sua identidade,
é importante. Só precisamos cuidar para que isso não
se transforme numa oposição sistemática. Um
racismo pelo contrário. Cada etnia tem suas coisas boas e
ruins. Talvez sejamos um laboratório dessa mistura, escolhidos
pelo destino como ponto de partida de uma nova civilização.
Inclusive porque todas as civilizações mediterrâneas
têm um umbigo comum, e a África, a Grécia, a
Itália, todos esses povos conviveram estreitamente durante
séculos em pé de igualdade. Existiam reinos poderosos
na África. Só que, por um caminho altamente perverso,
essa população veio parar aqui numa condição
de humilhação muito grande, e essa foi a memória
que ficou. Não a memória de um tempo mítico,
de uma herança cultural a preservar, mas a memória
da humilhação e da derrota. Esse talvez seja outro
aspecto a considerar, porque a memória coletiva é
um fator de união, de auto estima.
Como ficaria
esse estímulo à expressão do negro em termos
de políticas culturais aqui em Salvador?
Em primeiro
lugar, acho muito importante o reconhecimento de sua própria
identidade: de suas origens, de sua história, da arte de
seus antepassados. Com seriedade, sem demagogia, da mesma forma
que se ensina a história que diz respeito às culturas
européias. Não como uma coisa à parte, mas
como uma contribuição importante à formação
de nossa cultura, da cultura brasileira, que é uma fusão
de todos esses elementos de sua formação. Incentivar
a produção de projetos culturais que venham a expressar
essa raiz africana sem paternalismo, sem aquela de vamos aplaudir
só porque é afro e está na moda. Bem, eu não
vejo porque aceitar coisas de qualidade inferior, apenas porque
tenham a ver com cultura africana, quando se pode fazer uma arte
extremamente refinada utilizando-se esse potencial que me parece
ainda não convenientemente explorado, a não ser por
raros artistas de grande talento, dos quais vou citar apenas três
aqui na Bahia: Rubem Valentim, Mestre Didi, e Emanoel Araújo.
Eu vou citar aqui o Mestre Didi, um africano por ascendência,
uma pessoa intimamente ligada ao candomblé, que faz uma arte
absolutamente refinada, aceita em qualquer lugar do mundo, é
um homem culto, que vive a sua cultura intimamente. Acho a arte
que ele faz absolutamente moderna, no sentido de que está
inserida na cena prática cotidiana, e é boa porque
é boa, e não porque é feita por um negro.
E como chegar
a essa classificação valorativa?
Você não
aceita qualquer coisa. Aceita o que é melhor, segundo um
cânone. Agora, como chegar a esse cânone? Eu me pergunto
e realmente não tenho resposta. Como estabelecer esse cânone
e se é certo ou não ter esse cânone para as
artes. Quem é que diz o que é bom e o que é
ruim. O que é bom para mim às vezes não é
para outra pessoa. Mas existe essa possibilidade de se estabelecer
um cânone, que aliás não é imutável.
Do ponto de vista da literatura ocidental, por exemplo, já
está mais ou menos estabelecido quem são os melhores
de uma determinada época. Para a cultura africana, que é
ágrafa, muito mais oral, é muito difícil estabelecer
um cânone literário, por exemplo. Mas, talvez, seja
uma questão de desconhecimento. Por exemplo: na literatura
ocidental, grandes obras foram criadas em cima dos mitos religiosos.
As lendas africanas também são de grande riqueza.
São mitos enraizados no tempo, que também poderiam
vir a inspirar grandes obras. Mas como a cultura africana , digo
do ponto de vista da literatura, é basicamente constituída
de uma tradição oral, isso não ocorre. Daí
a grande importância das religiões que ajudaram a preservar
essa herança cultural riquíssima, como o candomblé.
Aí a gente entra na questão da cultura de massa....
Que é
uma questão seríssima, mesmo porque envolve juízos
de valor, que são sempre muito relativos. O que é
bom para uns é péssimo para outros. Na música
popular, por exemplo, onde a coisa fica mais visível, o que
mais vende, portanto, o que é mais consumido, é o
que possivelmente nós achamos que é péssimo.
Em termos de valor, quando se trata de arte, nem sempre a maioria
tem razão. Diria mesmo que quase nunca tem. Talvez porque
a grande arte seja sempre inquietante, cause uma estranheza que
não atrai os de paladar menos apurado. Porque arte é
emoção, mas é também conhecimento. Quando
eu leio um texto, eu sei que tem que ter atrás dele uma consciência
do que está sendo escrito. Poesia mesmo: algumas pessoas
acham que para fazer um poema é só ter um bom sentimento,
uma idéia maravilhosa, e jogar aquilo no papel. Não
funciona. É preciso aprender a ver a língua como instrumento.
Buscando essa
relação entre manifestação artístico
cultural e identidade, por menos que a gente queira, há uma
hegemonia do que está à mostra por essa indústria
da cultura. Como a senhora vê e até se relaciona com
isso como criadora?
A chamada industria
cultural é manipuladora, porque o seu fim é o lucro
imediato. O que não vende, o que não fatura, é
deixado de lado. Aqui na Bahia, a industria cultural está
criando um estereótipo, que é essa questão
da baianidade, de uma terra maravilhosa, o baiano alegre, um povo
feliz, que trabalha sorrindo. Você tem que viver sambando
o tempo todo, comendo acarajé no café da manhã,
não é isso. Mas se vende essa imagem lá fora.
O que me irrita muito é que a gente tem de conviver com essa
imagem de que baiano vive deitado na rede.... É tudo muito
folclorizado ... A cidade é muito densa, muito forte, para
que seja vulgarizada com essas coisas. Esta cidade, Salvador, marca
uma civilização, um mundo novo que está surgindo,
com seus contrastes, suas incoerências. Eu tenho uma relação
muito intensa com esta cidade. Mas esta cidade tem muitos extratos...
Até a minha visão, ela de vez e quando é muito
conturbada. Eu amo e às vezes eu odeio. Essa idéia
de Bahia tão forte, às vezes até mitológica,
muito viva. Quase como uma personagem com a qual eu dialogo o tempo
todo. Eu não escrevo sobre a cidade, eu escrevo contra a
cidade, na cidade, vivendo a cidade. Ela tem muito essa força...
E ainda a mística da cidade. As pessoas se apaixonam por
ela. E ao mesmo tempo, me pergunto: será que isso existe
ou é imaginação do meu inconsciente? Essa relação
mítica, totêmica ...
Essa imagem
criada.... Como é que seria isso? Quem cria isso?
Uma cidade,
como Vênus, nascendo da espuma do mar, uma cidade mágica,
mística, de uma religiosidade perturbadora e ao mesmo tempo
pagã. Encantando e inspirando artistas e escritores justamente
por sua diversidade, criando uma nova forma de expressão
cultural muito peculiar, que talvez pudesse ser vista até
como uma busca da identidade de que falamos no princípio.
Mas, de repente, a mídia resolveu investir fundo nessa idéia
de uma Bahia exótica e embarcou nessa super valorização
do que acha que é cultura afro e que agrada muito, que vende
lá fora por causa do exotismo. Quem cria é a mídia,
que é dos brancos. O branco cria esse mito do exotismo ligado
ao negro. E, de certo modo, isso me parece uma projeção
muito preconceituosa e extremamente redutora. O baiano é
muito preguiçoso, não trabalha muito, vive na rede....
Porque o baiano faz isso tudo? Porque é o baiano que tem
sangue negro na veia. E o negro é o que canta, é o
que dança... é o que trabalha cantando... Talvez trabalhassem
cantando para suportar o trabalho, para fugir de uma situação
insuportável, para preservar sua identidade. Acho culturalmente
muito perigoso esse marketing da terra da felicidade, carnaval 365
dias por ano... Isso acaba abafando outras manifestações
artísticas. Só o que dá mídia, é
um tipo de música, é um tipo de instrumentação,
e o resto vai ficando abafado, um pouco fora de foco.
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