Bahia, Bahia,
que lugar é este para você?
Eu, como paulista,
tenho hoje uma relação com a Bahia muito forte de
opção. Estou aqui porque quero. Isso já diz
quanto eu gosto da Bahia, com todas suas contradições,
injustiças etc..
Bahia, século
21 e Bahia, primeiro lugar do Brasil. Como você vê esta
relação?
A Bahia está
mais para a época do descobrimento do que para o século
21. Infelizmente, a gente não pode dizer que a Bahia já
está inserida no século 21, porque existem grandes
bolsões na Bahia que ainda são feudais. Atrasos sociais
e econômicos que remontam à época das capitanias.
Mas existe
um lado positivo dessa ligação com o passado: sua
raiz cultural (que é uma expressão já gasta),
aliada às suas origens étnicas diversas, conseguiram
amalgamar uma marca que é muito forte pela sua diversidade
e que remonta sempre ao passado. Acho isso fantástico em
termos culturais: por mais tradição que ela carregue,
ela é uma cultura dinâmica que se transforma. Eu sempre
a comparo com Pernambuco, um estado que tem um mesmo nível
de desenvolvimento e de tradição cultural - é
riquíssima a tradição cultural de Olinda, Recife
e também do interior de Pernambuco, do sertão de Pernambuco,
tão forte quanto a Bahia. Mas Pernambuco se caracteriza pela
manutenção e conservação de sua cultura
tradicional, não "descaracterizada". São
poucos os movimentos de quebra, como o Manguebeat. Os novos músicos
populares tentam, mas há todo um conceito vindo da heráldica
do Suassuna. A população mesmo é pela conservação
de sua tradição, enquanto que a Bahia é pela
inovação. E a característica da Bahia, que
considero um fenômeno único, é se lançar,
até diria, ingenuamente, nas modas. A Bahia adota e assimila
o que vier de fora, e não perde sua identidade básica,
essencial, não sei como. Como é que ela experimenta
de tudo sem medo, sem nenhuma vergonha e depois ela mastiga - antropofágica
mesmo! -, descartando aquilo que não tem a ver, mantendo
uma essência. Acho que essa é a ligação
entre passado e futuro.
A senhora
falou de identidade básica. Seria possível traçar
um pouco os contornos dessa identidade?
Quero chamar
a atenção que, se eu falei no singular, estou errada.
Não existe uma marca e não existe uma identidade.
Há uma tendência de a gente generalizar, padronizar
e querer tipificar. E isso é a grande desgraça, porque
reduz a um estereótipo. Nós temos uma diversidade
muita rica. A Bahia tem muitas identidades. Elas são formadas
pelas misturas possíveis a partir das nossas origens étnicas,
pelos ambientes (litoral, recôncavo, sertão...) e pela
necessidade de sobreviver nesses ambientes. Salvador? Salvador é
um grande caldo cultural. E o que realmente distingue a cultura
da Bahia, a meu ver, é a diversidade. Se você vai na
África procurar a origem do candomblé, verá
que cada região da África cultua um determinado orixá,
o orixá da região. Quando os escravos chegaram aqui,
foram estrategicamente misturados pelos senhores de engenho, para
que não houvesse a concentração de pessoas
de uma mesma nação, a fim de evitar uma revolta organizada.
Nessa mistura, a cultura deles também se misturou. Daí
nós termos um panteão que abarca orixás de
todas as nações. Olha como esse amálgama atual
começou a se constituir!
Sem contar com a religião católica que entrou. A gente
fala que originalmente eles usavam a religião católica
como um álibi, mascarando o seu culto verdadeiro. Mas hoje,
antes de fazer alguma grande comemoração no terreiro,
o pessoal de candomblé vai à igreja mesmo. Faz parte
da sua crença. Eu vi uma vez Mãe Creusa ficar emocionada
ao receber um livro de imagens barrocas dos santos católicos.
Ela olhava um por um, reconhecia que santo era aquele, quais eram
as qualidades daquele santo. Isso não é fingimento.
São católicos mesmo. Esse sincretismo é uma
das características marcantes da Bahia.
Outra é
a música de carnaval. Quase no Brasil inteiro - tirando as
influências do trio elétrico e do carnaval fora de
época, exportados agora - no carnaval se canta samba ou marchinha.
No carnaval do Rio de Janeiro, que é o grande ícone
do carnaval brasileiro, toca-se samba enredo e fim. O concurso das
escolas de samba foi engessado dentro de regras que eles próprios
estipulam. Isso demonstra bem a diferença cultural do Rio
para cá: eles preservam e querem uma forma - uma fôrma.
No nosso carnaval, nessa geléia geral, os trios elétricos
tocam de valsa a xote, passando pelo reggae, pela axé-music,
pelo frevo pernambucano... uma mistura geral. Hoje em dia ,eles
convidam muito artistas de fora - claro que é para dar maior
visibilidade na mídia -, os mais diversos, que não
têm nada a ver com o original do trio elétrico. E só
a história do trio é ótima. Foi uma visita
do pessoal que tocava o frevo de Recife numa banda de metais com
ritmo, percussão, e que foi aqui adaptada para corda - mostrando
justamente que a marca aqui é não ter fôrma.
Como é
que a dança, também tão presente na Bahia,
relaciona-se com essa cultura baiana, que não tem fôrma
nem forma definida?
Até agora
eu não tinha falado de dança... Porque a minha visão
de dança é que nela a gente expressa a vida. Então,
não adianta falar da dança sem ver esse contexto todo.
O bonito da dança contemporânea é que ela está
em processo contínuo, dinâmico, de transformação
e busca de novas linguagens. É essa a característica
da dança contemporânea no mundo. Só que não
há quem resista aos modismos intelectuais. E eu acho, sinceramente,
que a Bahia é mais independente a esses modismos que o Sul,
por exemplo. São Paulo tem mais acesso às informações
internacionais; mais intercâmbios; dançarinos e coreógrafos
com mais oportunidades de fazer residência na Europa, nos
Estados Unidos; mais poder aquisitivo para convidar mestres de dança
para dar workshops, cursos; ou para convidar coreógrafos
de fora que vêm para o Brasil montar espetáculos. Essa
troca, que é saudável - é bom enfatizar -,
ao mesmo tempo determina a linha da moda intelectual. E São
Paulo é muito sujeito a isso, é mais colonizado culturalmente.
E a Bahia, pelo fato de ter menos informação e por
dificuldades de se inserir no mercado, por dificuldades dessas trocas,
ficou meio isolada. Sem contar as suas origens: a história
da dança na Bahia veio de fora. Mas é uma outra história
- surpreendentemente, a matriz da dança na Bahia é
germânica (isso que eu adoro na Bahia, as coisas mais surpreendentes
acontecem aqui). Só que, durante esses últimos 30
anos, a Bahia está muito isolada da dança contemporânea
no mundo. Não digo completamente isolada, mas o bastante
para ela desenvolver a sua própria linha.
Eu quero até
dar como exemplo umas experiências que eu fiz no início
da década de 70. Na loucura de 68, 69, a gente sentia os
reflexos do movimento de mudança e revolução
da juventude da época - que é a minha geração
-, mas não sabia exatamente o que estava ocorrendo, em termos
de dança. Não tínhamos esse intercâmbio.
Eu comecei a criar uma dança itinerante, ambiental, fora
do palco, fora do padrão de corpo de baile tradicional. A
minha diversidade era nos tipos de dançarinos: dançarino
de 100 quilos com dançarino de 50 quilos... eu cheguei a
ter uma dançarina de 2 metros de altura, uma mulher alemã,
e dançarinos mínimos, quase anões. Eu curtia
essa diversidade de tipos. Não para usá-los como tipos,
mas dentro de sua peculiaridade expressiva. E fazia então
espetáculos na rua, em praça pública; subia
na escultura do pé do caboclo; na bienal de São Paulo
usando aquela bienal inteira... sem saber se alguém estava
fazendo isso ou não no mundo. Não me interessava ser
original, não é isso. Estava em busca de quebrar,
romper com valores estéticos pré-estabelecidos. Eu
queria ganhar a rua, me misturar com o povo, e depois, muito depois,
a gente veio a saber que existia um ou outro movimento também
nesse gênero por todo o mundo. Eram coisas que estavam postas
em termos de novas mentalidades: sair do gueto, das elites, dos
muros; eu que vinha da universidade, quebrar os muros da universidade,
ir para a rua. Nada é isolado, né? Mas não
havia essa influência tão direta como hoje você
sente. Você sente hoje, em alguns coreógrafos do sul,
principalmente, a influência direta da linha de mais vanguarda
que acontece hoje, a ponta de lança da dança contemporânea,
que é a Bélgica. O que isso é brasileiro, o
que isso é belga, onde está? Maravilha, o mundo desterritorializou-se.
A nacionalidade não está mais determinada pelo território,
mas por identidade de valores. Então, são outros conceitos
de identidade hoje. Mas acho que isso é um pouco demais...
E de que
fontes de expressão a dança na Bahia se alimenta hoje?
Na fonte básica
que todo artista, em qualquer linguagem, em qualquer lugar do mundo,
vai buscar: na fonte popular. O erudito é uma elaboração
formal, técnica, o conhecimento, o estilo de composição
e domínio de linguagem da fonte popular, que é a básica,
única, universal. Peculiar, particular de cada região,
mas universal o tempo todo.
Quando falo de fonte popular, falo de ilhas que ainda existem. A
Caminhada Axé, por exemplo, consegue congregar grupos - até
em vias de desaparecimento, que com isso estão renascendo
- do interior do interior, grupinhos pequenos, isolados, de manifestações
as mais diversas, essas sim, que não passam por essa dinâmica
de transformação tão violenta. Elas se mantém
pela tradição. Aliás, o que é um perigo.
Toda tradição rigidamente mantida tende a morrer.
Porque seus portadores vão envelhecendo, os jovens estão
a fim de dançar rock, punk, funk, rap, e não têm
interesse em fazer aquilo que a avó fazia. É preciso
que todo um contexto envolva e estimule o jovem a continuar. Enfim,
aqui a gente ainda encontra certas manifestações mais
"puras". E é aí que o povo vai pesquisar.
Ou não. Eu mesma fiz um espetáculo chamado "O
Choque Eletrônico", com o Grupo Salto, em que eu tentava
misturar essas manifestações todas, esse choque que
a gente via. Há coreógrafos que mostram exatamente
isso, essa misturada.
No seu caso,
existe alguma coreografia que expresse um pouco isso?
Tem em cena
uma coreografia de João perene com a dançarino Deni
Neves. Ela não tem nada do tradicional. É contemporânea,
é moderna, mas é tão autêntica, tão
verdadeira. O Deni Neves é pernambuco e João Perene
é baiano, que apesar de ser branco, transparente, veio de
uma camada popular, de uma vivência de periferia, portador
dessa cultura que estou lhe falando. Mas, ao mesmo tempo, eles são
requintados, de elaboração conceitual e formal da
dança muito requintada, de nível internacional. É
uma Bahia jovem, jovens coreógrafos, jovens dançarinos
inseridos no mundo e que não precisam necessariamente dizer:
eu sou baiano, tocando um trechinho de uma música conhecida.
Parece que estou me contradizendo. Mas é que eu acho que
se você conhece bem a fonte popular, tem aquilo incorporado
na sua vida, no seu corpo, de alguma forma, isso vai - não
explicitamente - transparecer no seu trabalho. Ninguém pode
negar a sua origem. Por mais que tenha se lançado no mundo,
na vida. Na hora de fazer o seu trabalho, ela surge, ela acontece.
A senhora
trabalhou um bom tempo na universidade e agora está trabalhando
no Projeto Axé. Como caracterizar essa passagem? Quais são
os encontros e os desencontros?
Você mesmo
está trabalhando com uma pessoa, o prof. Paulo Lima, que
está abrindo as portas da universidade. Graças a Deus.
Todos os embates que eu tive dentro da universidade me parecem já
superados, como barreiras. Enquanto coreógrafa, professora
da universidade, eu tive que criar um grupo particular para poder
realizar as minhas idéias. A universidade tinha um modus
operndi acadêmico, por mais moderna que tivesse nascido a
dança na UFBA. Eu cheguei aqui na época da fundação
e fiquei até me aposentar, na década de 80, a minha
vida inteira. Daí eu vejo hoje Paulo Lima abrindo as portas
da UFBA. E agora vai entrar até em currículo, atividades
em comunidade. Enquanto que quando a gente fazia isso, perdia ponto,
perdia crédito, eram postos para perder porque faltavam no
dia da prova dançando na rua. A gente era contra a universidade.
Eu tive que fazer um grupo fora, porque não conseguia inserir
as minhas propostas dentro. Hoje, com os novos parâmetros
curriculares, a UFBA está se abrindo para a comunidade -
ainda bem, porque é um absurdo ser chamada de universidade
uma corporação de ofício das mais fechadas,
como no momento em que eu vivi.
É natural que as pessoas da universidade que chegam a uma
reflexão mais profunda depois de muita experiência
de ensino em nível universitário cheguem à
conclusão que a solução do Brasil é
você pegar do nível mais baixo, do básico, das
pessoas mais carentes, mais miseráveis, mais excluídas,
porque sem isso não adianta ter a ponta-de-lança acadêmica.
Não é uma opção entre uma e outra. São
as duas frentes. Faz parte do papel da universidade ir lá.
A vanguarda artística é uma quimera, se você
não insere tudo isso socialmente. Então, chegar ao
Axé foi um caminho natural. E eu nem procurei, eu fui procurada,
por algum motivo. Abracei de cara este projeto, que comecei a implantar
no final de 98. E o que a gente conseguiu, de cara, é surpreendente!
Estava tudo aí, latente. Os meninos excluídos socialmente,
os meninos em situação de risco, completamente abandonados
pela sociedade, nunca são vistos como portadores de uma cultura
riquíssima, que está aí nas ruas. E que esse
potencial tem que ser usado como forma de resgatar a sua auto-confiança,
auto-expressão, como um caminho para sua estruturação
para se inserir na comunidade, na sociedade. É claro que
até chegar a isso é dificílimo. Mas aqui eu
usei tudo o que aprendi na universidade, que eu desenvolvi na universidade.
Essa coisa de criar métodos, de planejamento, porque não
se pode trabalhar com uma comunidade tão excluída
e tão perseguida socialmente, tão alijada de tudo,
sem muito planejamento.
A dança
exige, especialmente, a presença da disciplina. Como trabalhar
a dança com os meninos do Axé, quando eles estão
numa situação de total abandono, inclusive das regras?
Esse é
o âmago da questão. Como é que essa passagem
e essa adaptação é possível? Isso é
mérito do Axé. São 10 anos de experiência,
que hoje consideram a arte como via privilegiada de educação.
Sem a cultura, dificilmente se chega ao ensino. Principalmente para
crianças e jovens de uma situação social de
miséria. A gente apenas encaminha para uma linguagem, que
se mostrou muito eficiente, dentro da pedagogia do Axé, ou
seja: isso tudo tem que ser escolha do jovem, a pedagogia do Axé
é a pedagogia do desejo.
É claro que eu tive que rever todo o meu conceito de ensino,
de pesquisa. Eu me renovei muito aos 60 anos. Toda minha experiência
ajuda, mas tive que derrubar os conceitos antigos e me abrir muito.
Mas cheguei à conclusão que a dança é
ótima! A dança tem um apelo, realmente conquista o
menino. O menino quer dançar. Vai pela pedagogia do desejo:
é muito mais gostoso você pensar em ir a uma aula de
dança do que freqüentar a escola normal, pública,
com todas as suas deficiências e erros acumulados. É
por aí que você pega o menino. Tem a sedução
que faz com que ele se submeta ao sacrifício de uma aula
técnica, disciplinada. O fato de a dança ser um trabalho
coletivo, sempre, também leva o menino a - bem ou mal - se
enquadrar no grupo. Os exercícios são feitos no mesmo
ritmo, na mesma hora, o espaço tem que ser organizado, tem
que se respeitar o espaço individual e coletivo. Organiza
a cabeça. E, ao mesmo tempo, tem o momento que libera, que
solta, que tem o prazer pelo movimento, o prazer de se auto-expressar,
a dança dá o prazer físico mesmo. Se não
desse esse prazer, ele não se submeteria aos exercícios,
à disciplina.
E se você
tivesse numa mesma turma com meninos do Axé e os alunos da
UFBA? Como seria lidar com essa diversidade?
Depende em que
grau cada aluno estiver. Agora, os meninos da companhia, se forem
fazer uma aula com os meninos da universidade, você não
vai saber quem é de cada lugar. Agora, se você pegar
os meninos que a gente pega com somente três meses vindo da
rua, para juntar com os meninos da universidade, daí toda
a diferença social vai aparecer, evidente. Eu até
tenho uma opinião pessoal, que é até contra
o Axé. Eu gosto da diversidade dentro do grupo. Por mim,
a dança abrigaria meninos não só excluídos,
em situação de risco, como alguns meninos carentes,
porém com famílias estruturadas, de comunidade. Eu
acho que essa troca seria muito rica. Esses meninos carentes vão
ver que não são os mais carentes do mundo. Vão
ver que existe miséria maior e repensar um pouco o seu papel,
vão ver o que é ser vítima ou não ser
vítima social; e os meninos de rua vão conviver em
um ambiente que puxa para cima, de pessoas que já têm
uma vida mais resolvida. Mas o Axé não acha que pode
desperdiçar os seus recursos pessoais e materiais com meninos
que não têm tanta necessidade, quer se concentrar nos
mais excluídos. E isso termina gerando um gueto. Mas meu
sonho é poder mesclar. Lembra da primeira pergunta? "Quando
a gente fala que Bahia é essa?", a riqueza está
na mistura: não é só ser preto, ser branco,
rico ou pobre. A mistura é que é a solução.
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