"... o corpo é expressão de todo esse ambiente complexo que é nosso organismo mamífero e pensante, numa relação constante com o tecido cultural, que na Bahia tem uma riqueza e uma complexidade enorme, pois é antes de tudo, plural... O que acontece com idéias novas quando encontram esse ambiente onde o movimento - dos rituais, das danças etc. - é um dos códigos fundamentais?... As contradições desse tecido em que a gente vive é que mostram a capacidade histórica da Bahia de estar aberta ao novo. Foi assim com o curso de dança da UFBA em 1956, numa época em que no Sul, dança era apenas Balé... Como algo tão novo poderia conviver com esse tradicional tão forte? ...É a lição do capoeirista, que está sempre com o pé atrás. O equilíbrio..., o corpo flexível do baiano mostra também uma forma de pensar flexível, por isso se apropria muito de novas idéias que resultam em novos conteúdos sem perder o pé atrás, sem baixar a guarda, sem cair. E se cair cai bem..."

 
 
 

 

 

 

Dulce Aquino
Professora Doutora da Escola de Dança da UFBA




Que lugar é a Bahia para você?

A Bahia é um tecido cultural muito plural. Pensando na relação do organismo com o ambiente... a gente tem uma riqueza, uma complexidade enorme na Bahia. Imaginar além dos aspectos das tradições que nós temos, a força da presença do negro, esse pluriculturalismo... isso ao lado de uma flexibilidade com o novo. Imaginar que em 1956, nós éramos o único curso universitário de dança no país. Na América Latina havia uma experiência no Chile. E com um perfil, uma identidade, influenciada pelo que tinha de mais novo na Europa em termos de ruptura com o tradicional. No sul dança ainda era balé ... Essa inovação acontecia na Bahia. Era um centro de arte, onde a dança, especificamente tinha essa configuração. O que acontece com idéias novas quando encontram esse ambiente, onde o movimento é um dos códigos de melhor registro da cultura africana por exemplo? Quer dizer, é através dos rituais, das danças, que toda a tradição cultural se define. Como algo tão novo poderia conviver com esse tradicional tão forte? Essa mescla é a maior riqueza que nós temos na Bahia.

Por outro lado, temos, hoje, o surgimento de um fenômeno muito sério que é a indústria turística. Isso é inevitável. Faz parte do processo de desenvolvimento. Qual a nossa responsabilidade diante disso? É não deixar que esta cidade vire uma cidade balneário, onde, pensando na mimética, as idéias mais primárias, mais simples são as que têm reflexão imediata. Qualquer processo mais complexo gera uma não identificação. Então, esse trabalho da complexidade é um desafio muito grande para o pensador baiano. Não se pode dizer que nós temos que lutar contra o processo de desenvolvimento do turismo. Isso seria idéia de Peter Pan, romântica e infantil. Agora, como podemos trabalhar essa porosidade? Não deixar que isso vá amalgamando, pasteurizando tudo? Porque aí há uma riqueza, no sentido do dinheiro mesmo. Há um mercado, uma economia pujante na produção da música baiana, nessa cultura do Axé. Me lembro agora da Arquitetura do efêmero da qual fala Manoel José de Carvalho (pesquisador da Faculdade de Arquitetura da UFBA) referindo-se à cidade que é construída no carnaval. Os camarotes são construídos numa área de 2000m², um sanitário é construído na quinta-feira para ser retirado na próxima quarta-feira e custa 70 mil reais. Essa questão do efêmero, que mostra onde circula riqueza em termos de capital. Dentro de um trio elétrico você tem uma sofisticação enorme da tecnologia em termos de som. É aquela qualidade, aquela amplitude... Uma coisa de alta potência que "não dá defeito"... é uma tecnologia de ponta no mundo. Ao mesmo tempo músicas óbvias, com um gestual primário que todas as pessoas aprendem e repetem... São contradições imensas com as quais nós temos que labutar. O conceito de resistência eu acho fantástico. Tem uma pulsão de paixão da resistência. A gente ainda tem de estar nessa ação de resistência ao que possa encobrir a complexidade que a gente pode achar nesse ambiente.

Gostaria que a senhora voltasse a falar da relação entre o tradicional e o inovador.

Justamente as contradições desse tecido complexo em que a gente vive é que mostram a capacidade histórica da Bahia de estar aberta ao novo. Eu lembro de uma reação muito grande ao uso que se fez dos símbolos patrióticos em 68 quando a gente via em shows pessoas ligadas ao candomblé com a bandeira do Brasil enrolada no corpo. Símbolos que estavam a serviço de uma ideologia outra, ligado a uma coisa mais tradicional, mais rica. Que é, por natureza, resistência cultural e que no entanto tem essa capacidade de ir se adequando a pressões... , Uma riqueza de possibilidades... uma certa flexibilidade... É a lição do capoeirista, que está sempre com o pé atrás. O equilíbrio... Nesse tecido cultural, os aspectos coreográficos, o corpo flexível do baiano mostra também uma forma de pensar flexível, por isso se apropria muito de novas idéias e resulta novos conteúdos sem perder o pé atrás, sem baixar a guarda, sem cair. E se cair cai bem... Capoeira que é bom, se um dia ele cair cai bem... [cantarola]. É essa coisa de buscar a inovação, ser poroso à inovação. E na hora H se você tem uma conversa com um mestre de capoeira você tem uma lição profunda de vida. Ainda que ele esteja apresentando sua capoeira em 80 países mundo afora. Ele tem essa resguarda de conteúdo, de identidade.

Que identidade é essa?

A gente tá com o tradicional, com certa sabedoria, certos ritos, certos códigos culturais que não se abre mão. É nele, que aqui e ali a gente se reencontra. Outro dia li no jornal uma crítica sobre o trabalho de dança de Pina Baush sobre a Bahia, no qual, segundo a crítica, ela não fala muito da nossa miséria. O espetáculo ainda não está pronto, só vem em agosto para o Brasil, mas tem algumas fotos no jornal. Alguns gestos, alguns diálogos nos quais a gente reconhece essa brasilidade. Talvez essa definição de brasilidade ou de baianidade a gente reconheça nos resultados, nos produtos, no estar fazendo. E aí quanto mais abrir possibilidades para o artista exercitar essa baianidade... onde é que ele vai exercitar isso? É no palco, nessa possibilidade de fazer. É com essa possibilidade de fazer que a gente hoje sofre diante da indústria do turismo. O dançarino baiano que tem uma riqueza enorme dentro da cultura afro, tem essa flexibilidade de corpo, não tem muito espaço para mostrar um pensamento que não esteja submetido a esse mercado do turismo, do "folclorismo". Entre aspas porque é um folclorial muito rico, muito consistente, mas também, na medida em que a gente transformou isso num rebolado de Carla Perez, a gente reduziu... ou nas bananas de Carmem Miranda ou nas mulatas de Sargentelli... quer dizer, é um jeito de vender para o turismo o nosso produto.

Haveria diferença entre o inovador que faz surgirem as Escolas de arte na UFBA e as inovações que se misturam ao que seria tradicional?

É a mesma porosidade... Foi aqui na Bahia que se deu o fenômeno Edgard Santos. E o que foi isso? A construção de um meio acadêmico artístico. Hoje nós estamos nos debatendo com a reforma curricular na área de arte e estamos voltando ao ideário... claro que somos diferentes... mas os princípios estão voltando. Que lugar é esse que o artista vai encontrar para fazer um curso de terceiro grau...? Que possibilidades ele vai encontrar. Será que é com aquelas disciplinas que em 78, um currículo mínimo exigia, aquela fragmentação, ou é fazendo arte, produzindo arte? Era tão inovador, em 50, que enquanto se falava em conservatório de música no Brasil inteiro, na Bahia foi fundado os Seminários Livres de Música, por Koellreutter. A Bahia era um grande laboratório de criação. Então, o ideário que a gente busca resgatar com uma condição diferente, um ambiente diferente, toda a miséria que a universidade passa hoje, a gente tenta restaurar, retomar esse ideário das escolas de arte como um grande laboratório. Esse foi o grande fenômeno Edgar Santos. Mas que só na Bahia podia acontecer isso e ter um reflexo tão grande na sociedade. A gente diz muito que a universidade fica intramuros, que ela não se liga com o que está fora. Mas eu não sei se a Universidade Federal da Bahia ficou tão fechada na área de artes. E essa capacidade que teve essa sociedade, ao mesmo tempo, de ser estimulada por esse pensamento novo. Claro que a universidade era o único grande centro cultural, tem uma série de coisas que se modificaram hoje. Há muitas outras instituições que desenvolvem cultura e arte. Mas é essa capacidade de pegar idéias novas e não criar um atrito com ela, mas deixar que ela permeie o seu conteúdo fazendo surgir algo que se transforma. Claro, você vai me dizer, segundo Pierce, essa é a ação do signo mesmo. Algo que ganha novo sotaque e se transforma em outro. Contudo, o que se vê na Bahia é essa possibilidade de menor atrito com o novo. Que as coisas são assim, são. Elas acontecem vindo o novo e isso se modificando. Mesmo num sistema com boa conexão, ele tem um grau de liberdade para não implodir. A arte seria o grau de liberdade do sistema. Na Bahia se constitui essa flexibilidade com o outro. Qual seria a diferença entre o papel da universidade naquele momento e o uso da tecnologia de inovador? Eu não sei se tem tanta diferença... Acho que é a mesma flexibilidade. A mesma busca do inovador que não é só pelo desafio do mercado, mas pela busca de ser. Não é a toa o fenômeno Edgard Santos na Bahia. Um organismo só atua significativamente se o ambiente permite. Se não há identificação, o organismo não se desenvolve nesse ambiente. O ambiente cultural reconhece, aceita, permite a constituição daquela universidade.

Em que medida essa indústria do turismo é válida enquanto parte do processo e em que medida é cruel?

É cruel. É inexorável. Sendo assim, o que nos cabe? A realidade não muda porque a gente quer. Mesmo revoltada com o que está à minha volta, a alteridade se impõe. Cedendo imediatamente para a realidade eu posso me desestruturar, me perder porque eu me submeto facilmente ao que o outro me impõe. Aí é que eu acho que esse processo de resistência flexível, pensar, pensar, pensar... É um exercício que a gente é obrigado a fazer aqui na Bahia ou então a gente pendura a chuteira. Se você partir para ver só o outro lado é um desespero. Mas eu acho que há espaço para cultivar as idéias, permitir que isso como um vírus mimeticamente se replique. É o papel de todos os pensadores, dos professores universitários. Assumir uma visão crítica diante dessa sociedade.

Que autores, grupos culturais a senhora considera reveladores dessas questões?

Trabalhei com as teorias da evolução. Tem uma série de estudos transdisciplinares das teorias darwinistas... Gosto de pensar nos organismos... a idéia de evolução como processo de mudança, transformação e como esse rio temporal de DNA. Nós somos resultado, todos os nossos antepassados foram vitoriosos. Se o meu avô, do avô, do avô, do avô tivesse morrido eu não estava aqui. Se a gente for nesse caldo cultural e se a gente conseguir ver as origens. Gosto dos estudos da nova biologia, da nova física... Heinsenberg fala do tempo em que o senso comum vai se dar conta dessa nova natureza que está aí, dessa nova realidade que está se constituindo, de que a natureza na realidade não é tão harmônica, o acaso e a incerteza estão aí. A incerteza e a probabilidade levam a uma reconfiguração dessa natureza. Não quero discutir a dicotomia corpo e mente. Como o corpo é expressão de todo esse ambiente complexo que é nosso organismo mamífero e pensante?

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