Qual
é, na sua opinião, a importância de uma discussão
sobre a identidade cultural local para a nossa sociedade?
A questão
da identidade é extremamente importante para toda e qualquer
sociedade. Por outro lado, esta questão pode também
se tornar uma prisão para as pessoas. Na medida em que toda
identidade seja congelada, vire um parâmetro, um modelo, ela
passa a ser algo constrangedor, em qualquer lugar. O que eu vejo
hoje é que, de uma certa forma, a questão da identidade
está generalizada, está colocada tanto por setores
culturais que querem se utilizar positivamente da tradição,
quanto por setores que preferem, de uma forma conservadora, manter
o status quo e não mudar absolutamente nada. Acho que é
uma questão importante e, ao mesmo tempo, complicada, na
medida em que só a palavra identidade não é
capaz de dizer se ela é importante ou não.
Que outra
palavra seria mais apropriada para expressar esta questão?
Acho que identidade
é uma dessas palavras. A questão é como você
analisa essa produção cultural, em que medida ela
está possibilitando novas formas de pensar, novas formas
de fazer, está possibilitando a recuperação
de coisas mais íntimas da vida de uma população
e, ao mesmo tempo, potencializar essa vida. Fazer com que sejamos
contemporâneos do nosso próprio tempo - isso eu acho
que é um dado fundamental da produção cultural.
Toda produção mimética, ou que simplesmente
reproduz sem crítica, eu acho bastante complicada.
Como isto
está presente nas construções e dinâmicas
da cidade? Na área de arquitetura, a questão cultural
é estudada de alguma forma?
É bastante
debatida. Na área de arquitetura existe, por exemplo, a questão
do patrimônio histórico, que envolve questões
de memória, de história, de identidade. Muitas vezes
isto é entendido apenas como um dado, esvaziado de conteúdo
social. O que se valoriza são apenas as edificações,
não a relação edificações-pessoas,
isso é bastante complicado. Por outro lado, muitas vezes
assistimos a um processo extremamente fantasioso de recuperação
desse patrimônio. É uma invenção e, como
toda invenção, pode ser boa ou má. A invenção
é boa quando agrega valor e má quando retira valor.
Algumas intervenções de recuperação
que foram feitas na região central de Salvador, por exemplo,
reinterpretam aquela área de uma forma bastante limitada.
Teve um processo de esvaziamento social e um processo de criação
de uma forma arquitetônica que tem muito pouco a ver com as
tradições da cultura baiana, como por exemplo a criação
de quadras internas. É uma tradição hispânica
interessante, mas não tinha esse tipo de importância
na configuração do espaço de Salvador. Claro
que ela serviu para criar lugares de concentração,
lugares coletivos dentro do Centro Histórico, onde o espaço
é extremamente limitado. Mas, ao mesmo tempo, traz essa contradição.
Mais complicado que isso são iniciativas tipo Aeroclube,
que tentam trazer uma história da arquitetura que nunca existiu,
é completamente inventada - e mal inventada. É uma
produção arquitetônica de péssima qualidade
e, de uma forma ou de outra, tende a criar algum tipo de expectativa
de identidade que não existe. Se faz uma breve referência
a questões, como a arquitetura dos anos 30, mas não
tem nenhum conteúdo mais evidente, acaba sendo a forma pela
forma. Sem falar na influência de algumas correntes americanas
bastante discutíveis.
Temos algum
exemplo de intervenção interessante, positiva, em
Salvador?
Claro que sim.
Eu acho que uma intervenção interessante, que inclusive
lida bastante com o conceito de memória e identidade, é
o prédio da CHESF - Central de Hidrelétricas do São
Francisco, na Paralela. É um projeto de Assis Reis, no qual
a produção arquitetônica é de primeiríssima
qualidade, sem dúvida nenhuma uma referência para o
Brasil, se não para uma esfera mais ampla. Em geral, é
muito fácil se pensar identidade como sendo a reprodução
exata de uma mesma coisa. O complicado é trabalhar com a
idéia de identidade de uma forma não mimética.
Para falar da Bahia, eu não preciso necessariamente colocar
um berimbau, um atabaque e uma água de coco. Isso é
o que eu chamo de urbanismo literal. Determina-se que os orelhões
vão ser assim, os lixos vão ser assim, então
se faz um imobiliário muito pobre, do ponto de vista conceitual.
Podemos ver em algumas versões do Prêmio Liceu de Design,
que tem muito a vertente do móvel regional, como se consegue
elaborações extremamente requintadas dessa mesma identidade.
Houve por exemplo a cadeira Oxóssi, do Prof. Pasqualino,
que ensina nesta escola, onde se vê todo o requinte da técnica
e da proposição estética, aliado a um dado
cultural do candomblé, que é extremamente importante.
A luminária Omolu também, que foi feita no último
Salão de Design. No prédio da CHESF, você tem
a construção de uma idéia de arquitetura inserida
muito bem no local, com excelentes condições de ventilação,
todo construído com tijolo, uma técnica muito semelhante
ao que se tem na Bahia, sem abrir mão do concreto, das estruturas
metálicas, de uma versão contemporânea da arquitetura.
Tem também a produção do Lelé, do João
Figueiras Lima, com toda a rede Sara, os tribunais, etc., uma figura
extremamente importante da arquitetura brasileira e internacional,
que desenvolve um trabalho aqui, todo industrializado, pegando uma
outra tradição da arquitetura, também uma coisa
bastante interessante.
Que outros
pensadores e fazedores você indicaria como referências
de lidar com a dinâmica da cidade, na área de cultura
em geral?
Em termos de
pensar a cidade, tem enfoques muito distintos para pensar isso.
Quem pensa muito a cidade de Salvador é Ângela Gordilho,
desta Faculdade, uma pessoa importante sobretudo do ponto de vista
da habitação popular. Eliodoro Sampaio é uma
pessoa que pensa muito o urbanismo, nos seus aspectos mais macro.
No cenário cultural, acho que Ubiratan Castro, lá
do CEAO, é uma figura bastante motivadora e pensa essas questões
da identidade de uma forma bastante complexa, sem se deixar levar
pelo imediatismo, pelo folclorismo ou pelo turismo, coisas que vão
bem em conjunto. No mais tem teatro, cenografia, dança...
Por exemplo, Cristina Castro, acho fundamental o trabalho que ela
vem fazendo na dança, lá no teatro Vila Velha. O espetáculo
"Sagração da vida toda" é fantástico.
Moacir Gramacho, na cenografia. Tem um artista plástico,
Valuízio Bezerra, que eu também acho importante. Bel
Borba, acho a atuação pública dele muito legal,
o trabalho com azulejos é muito interessante. Valuízio
Bezerra trabalha mais com espaços internos. Em teatro tem
Fernando Guerreiro, Márcio Meireles... tem esse espetáculo
do Artur Bispo do Rosário, que é maravilhoso. Não
do ponto de vista cenográfico, da iluminação
ou da música, mas o trabalho de ator do João Miguel
é maravilhoso, super bonito. Tem uma pessoa muito mobilizadora,
no sentido de trazer coisas legais para cá, de promover coisas
interessantes, que é a diretora do Museu de Arte da Bahia,
Sílvia Ataíde. Em música tem Mário Ulloa,
maravilhoso.
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