A questão é como analisar essa produção cultural, em que medida ela está possibilitando novas formas de pensar, novas formas de fazer, está possibilitando a recuperação de coisas íntimas da vida de uma população e potencializando essa vida. Fazer com que sejamos contemporâneos do nosso próprio tempo - isso é um dado fundamental da produção cultural.

 
 
 

 

 

 

Prof. Ana Fernandes
Diretora da Faculdade de Arquitetura da UFBA


Qual é, na sua opinião, a importância de uma discussão sobre a identidade cultural local para a nossa sociedade?

A questão da identidade é extremamente importante para toda e qualquer sociedade. Por outro lado, esta questão pode também se tornar uma prisão para as pessoas. Na medida em que toda identidade seja congelada, vire um parâmetro, um modelo, ela passa a ser algo constrangedor, em qualquer lugar. O que eu vejo hoje é que, de uma certa forma, a questão da identidade está generalizada, está colocada tanto por setores culturais que querem se utilizar positivamente da tradição, quanto por setores que preferem, de uma forma conservadora, manter o status quo e não mudar absolutamente nada. Acho que é uma questão importante e, ao mesmo tempo, complicada, na medida em que só a palavra identidade não é capaz de dizer se ela é importante ou não.

Que outra palavra seria mais apropriada para expressar esta questão?

Acho que identidade é uma dessas palavras. A questão é como você analisa essa produção cultural, em que medida ela está possibilitando novas formas de pensar, novas formas de fazer, está possibilitando a recuperação de coisas mais íntimas da vida de uma população e, ao mesmo tempo, potencializar essa vida. Fazer com que sejamos contemporâneos do nosso próprio tempo - isso eu acho que é um dado fundamental da produção cultural. Toda produção mimética, ou que simplesmente reproduz sem crítica, eu acho bastante complicada.

Como isto está presente nas construções e dinâmicas da cidade? Na área de arquitetura, a questão cultural é estudada de alguma forma?

É bastante debatida. Na área de arquitetura existe, por exemplo, a questão do patrimônio histórico, que envolve questões de memória, de história, de identidade. Muitas vezes isto é entendido apenas como um dado, esvaziado de conteúdo social. O que se valoriza são apenas as edificações, não a relação edificações-pessoas, isso é bastante complicado. Por outro lado, muitas vezes assistimos a um processo extremamente fantasioso de recuperação desse patrimônio. É uma invenção e, como toda invenção, pode ser boa ou má. A invenção é boa quando agrega valor e má quando retira valor. Algumas intervenções de recuperação que foram feitas na região central de Salvador, por exemplo, reinterpretam aquela área de uma forma bastante limitada. Teve um processo de esvaziamento social e um processo de criação de uma forma arquitetônica que tem muito pouco a ver com as tradições da cultura baiana, como por exemplo a criação de quadras internas. É uma tradição hispânica interessante, mas não tinha esse tipo de importância na configuração do espaço de Salvador. Claro que ela serviu para criar lugares de concentração, lugares coletivos dentro do Centro Histórico, onde o espaço é extremamente limitado. Mas, ao mesmo tempo, traz essa contradição. Mais complicado que isso são iniciativas tipo Aeroclube, que tentam trazer uma história da arquitetura que nunca existiu, é completamente inventada - e mal inventada. É uma produção arquitetônica de péssima qualidade e, de uma forma ou de outra, tende a criar algum tipo de expectativa de identidade que não existe. Se faz uma breve referência a questões, como a arquitetura dos anos 30, mas não tem nenhum conteúdo mais evidente, acaba sendo a forma pela forma. Sem falar na influência de algumas correntes americanas bastante discutíveis.

Temos algum exemplo de intervenção interessante, positiva, em Salvador?

Claro que sim. Eu acho que uma intervenção interessante, que inclusive lida bastante com o conceito de memória e identidade, é o prédio da CHESF - Central de Hidrelétricas do São Francisco, na Paralela. É um projeto de Assis Reis, no qual a produção arquitetônica é de primeiríssima qualidade, sem dúvida nenhuma uma referência para o Brasil, se não para uma esfera mais ampla. Em geral, é muito fácil se pensar identidade como sendo a reprodução exata de uma mesma coisa. O complicado é trabalhar com a idéia de identidade de uma forma não mimética. Para falar da Bahia, eu não preciso necessariamente colocar um berimbau, um atabaque e uma água de coco. Isso é o que eu chamo de urbanismo literal. Determina-se que os orelhões vão ser assim, os lixos vão ser assim, então se faz um imobiliário muito pobre, do ponto de vista conceitual. Podemos ver em algumas versões do Prêmio Liceu de Design, que tem muito a vertente do móvel regional, como se consegue elaborações extremamente requintadas dessa mesma identidade. Houve por exemplo a cadeira Oxóssi, do Prof. Pasqualino, que ensina nesta escola, onde se vê todo o requinte da técnica e da proposição estética, aliado a um dado cultural do candomblé, que é extremamente importante. A luminária Omolu também, que foi feita no último Salão de Design. No prédio da CHESF, você tem a construção de uma idéia de arquitetura inserida muito bem no local, com excelentes condições de ventilação, todo construído com tijolo, uma técnica muito semelhante ao que se tem na Bahia, sem abrir mão do concreto, das estruturas metálicas, de uma versão contemporânea da arquitetura. Tem também a produção do Lelé, do João Figueiras Lima, com toda a rede Sara, os tribunais, etc., uma figura extremamente importante da arquitetura brasileira e internacional, que desenvolve um trabalho aqui, todo industrializado, pegando uma outra tradição da arquitetura, também uma coisa bastante interessante.

Que outros pensadores e fazedores você indicaria como referências de lidar com a dinâmica da cidade, na área de cultura em geral?

Em termos de pensar a cidade, tem enfoques muito distintos para pensar isso. Quem pensa muito a cidade de Salvador é Ângela Gordilho, desta Faculdade, uma pessoa importante sobretudo do ponto de vista da habitação popular. Eliodoro Sampaio é uma pessoa que pensa muito o urbanismo, nos seus aspectos mais macro. No cenário cultural, acho que Ubiratan Castro, lá do CEAO, é uma figura bastante motivadora e pensa essas questões da identidade de uma forma bastante complexa, sem se deixar levar pelo imediatismo, pelo folclorismo ou pelo turismo, coisas que vão bem em conjunto. No mais tem teatro, cenografia, dança... Por exemplo, Cristina Castro, acho fundamental o trabalho que ela vem fazendo na dança, lá no teatro Vila Velha. O espetáculo "Sagração da vida toda" é fantástico. Moacir Gramacho, na cenografia. Tem um artista plástico, Valuízio Bezerra, que eu também acho importante. Bel Borba, acho a atuação pública dele muito legal, o trabalho com azulejos é muito interessante. Valuízio Bezerra trabalha mais com espaços internos. Em teatro tem Fernando Guerreiro, Márcio Meireles... tem esse espetáculo do Artur Bispo do Rosário, que é maravilhoso. Não do ponto de vista cenográfico, da iluminação ou da música, mas o trabalho de ator do João Miguel é maravilhoso, super bonito. Tem uma pessoa muito mobilizadora, no sentido de trazer coisas legais para cá, de promover coisas interessantes, que é a diretora do Museu de Arte da Bahia, Sílvia Ataíde. Em música tem Mário Ulloa, maravilhoso.

Apoio:

Quem Faz Salvador
Enciclopédia de Lideranças Culturais

 

.



[ voltar para o início ]
[voltar para o índice da semana 6]


.. direitos ® UFBA .. | .. visual: pérsio ..