Identidades
O tema é
cultura e identidade. Mas por que falar em identidade nacional no
singular? Não há como entender, numa sociedade complexa
como a nossa, uma identidade única. Estamos defendendo um
país com diversidade, uma sociedade democrática que
aceita o diverso, não o diferente, que é outra coisa
-- a imagem invertida do eu. Por isso meu título menciona
identidade no plural -- identidades.
Embora tendo
sempre convivido com a diversidade, no Brasil se insistiu sempre
apenas na unidade da cultura brasileira. O ideário do projeto
nacional tendeu sempre a sonegar as contradições,
os contrastes, o diverso. A ênfase no humanismo brasileiro,
tão questionável hoje, seu bom-mocismo, que se associa
à unidade real da língua e à presença
generalizada do Catolicismo dá apoio ao propósito
de afirmar uma identidade cultural nacional unitária. Em
1908, Afonso Celso publicou Porque me ufano do meu país.
O livro teve trinta edições, o que demonstra a importância
para a elite brasileira de construção de um conceito
de identidade nacional. Em seguida, Paulo Prado, com Retrato do
Brasil, embora pessimista, chama a atenção para a
melancolia brasileira como qualidade nacional. E Sérgio Buarque
de Holanda, que mais tarde produziria um livro de grande mérito,
como Raízes do Brasil, nele insiste no homem cordial como
caráter brasileiro. Em todos os casos, subentende-se uma
unidade nacional dada de princípio. Essa construção
de um conceito de cultura nacional singular não servirá
à naturalização da exclusão, à
exorcização da contradição e da transformação?
Parto da hipótese
de que a afirmação da unidade cultural sustenta o
projeto da elite brasileira de manter e alargar privilégios,
negando o povo, mais tarde simbolizado no ex-escravo. E não
o contrário, o de um projeto genuíno de unidade em
que se reduzisse as distâncias entre elite e povo. Construir
um conceito de identidade nacional una significa a negação
das diferenças, um encegueiramento frente à realidade
social brasileira. Sem dúvida, somos um país com um
forte lastro unitário, mas também uma nação
plural, embora um pluralismo que esperamos convergente, numa definição
de Gilberto Freyre.
Após
a Abolição, não se aproveitou o ex-escravo
no trabalho livre por incapacidade, mas porque um trabalhador com
a experiência de duzentos anos de Brasil trazia a capacidade
de rapidamente crescer como sujeito político. O que se substituía
ali não era um mau trabalhador, necessariamente incompetente,
mas um trabalhador projeto de cidadão por outro que se esperava
ter que levar muito tempo para se construir como tal. Melhor um
imigrante zero-quilômetro, politicamente analfabeto, passível
de se submeter a novas formas de servidão. Não surpreende
que a Liga das Nações tenha recebido reclamações
e houvesse movimentos contra a política de imigração
brasileira e o mau-trato servido aos imigrantes. E quando se esgotaram
ou dificultaram as levas de imigração européia,
o Brasil aceitou a imigração japonesa, o asiático,
a pior população do mundo na percepção
dos países ocidentais na época. O brasileiro ex-escravo,
não!
É necessário
raciocinar com a idéia de pluralidade, tanto quanto é
necessário não desvalorizar a importância da
unidade. É esta assumida dialética entre unidade e
pluralidade que poderá nos tornar um país democrático.
Os Hs
da Bahia
Na crônica
local há uma Bahia com H maiúsculo, nobre, cordial,
que recebe seus pares com requintada, mas distante hospitalidade
e que supõe uma Bahia sem "h". Minha segunda hipótese
é que o código da Bahia com h minúsculo, da
pobreza feliz que não come mas está bem, que mora
mal mas é pitoresca, subcidadã, é agora parte
de uma pauta nacional em formação, consistente com
o projeto brasileiro de negar a diversidade, jogando num mesmo mar
de malqueridos os baianos de todos os brasis .
Num país
que vem se integrando cada vez mais pela economia e a comunicação,
porém tornando-se mais complexo, os brasileiros de diferentes
lugares e posições sociais precisam lidar de modo
unívoco com parcelas diferentes dessa sociedade. A baianidade
sem h, destinada ao baiano pobre, preto, humilde, introduz, num
código nacional emergente, pauta comum de interlocução,
uma retórica capaz de levar em conta as distinções
de classe, numa linguagem de palavras e atos apropriada a lidar
com o "zé-povinho", o "joão-ninguém".
Da mesma forma que se introduzira e já se havia consagrado,
a nível nacional, uma forma particular de tratamento entre
burguesia e proletariado de um São Paulo moderno, locomotiva
do desenvolvimento nacional, a Bahia sem h, ou h minúsculo,
contribui hoje com a retórica das relações
de exclusão ¾ sem h ¾ para tratar-se o baiano
nacional. Na verdade, a baianidade vende bem e seu êxito deriva
em parte de participar desse processo de construção
de uma língua franca para falar Brasil de fora a fora.
A formação
dessa língua franca tem também outras vertentes. Fala-se
intensamente em algo também aparentemente arcaico, decantado
por Afonso Arinos e por Tristão de Atayde, que é a
mineiridade. Em campanha para presidente da República, Tancredo
Neves dizia que Minas teria a oportunidade, com a ascensão
que ele esperava do seu próprio grupo, de expor para o país
a clarividência, o bom senso, o equilíbrio que sempre
a caracterizou.
Nesse código
nacional, a mineiridade funciona como a retórica de articulação
de cúpula das elites e tem seu papel dentro de Minas Gerais,
na agregação ou consolidação dos interesses
da elite local; mas tem uma função, a nível
nacional, de código de negociação nos círculos
de poder .
Quem sabe o
fracasso político do mineiro Aureliano Chaves não
se deveu à sua falta de mineiridade? Jânio foi tudo
menos mineiro. Fernando Collor certamente não perdeu o poder
por conta de seu projeto tão próximo ao de Fernando
H. Cardoso, mas graças à sua retórica e etiqueta
política. Outros foram igualmente autocráticos, mas
a Jânio e Collor faltaram as decantadas virtudes mineiras
da negociação, da linguagem cifrada, das meias palavras
e da temperança palaciana.
Com relação
à Bahia, é sempre fundamental saber: Que Bahia? Qual
a essência da Bahia? Para imaginar identidades, que contrastes,
que semelhanças? O que há entre essência e existência,
substrato e acidente, ser e dever nessa Bahia? De que Bahia se fala:
a Bahia dos donos do poder, ou dos calados, dos decapitados pela
escola, por uma cultura que nos nega a capacidade de pensar? Somos
proibidos de proibir, mas somos também proibidos de refletir;
decepados e, de algum modo, proibidos de amar e de odiar. Hoje baianos
têm aprendido a ser mineiros em Brasília, mas cariocas,
paulistas, mineiros e outros dentro de casa tratam, cada vez mais,
seu "zé-povinho" à baiana.
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