"O ideário do projeto nacional tendeu sempre a sonegar as contradições, os contrastes, o diverso."

 

Fonte: BRANDÃO, Maria. "Carnaval, carnavais: cultura e identidade nacional". In: Seminários de Carnaval II. Pró-Reitoria de Extensão da UFBA. Edufba: Salvador, Ba, 1999, 250p.

 

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Carnaval, carnavais: cultura e identidade nacional
Prof. Maria Brandão
Socióloga Professora da UFBA
Secretaria regional da SBPC em 1981, ano em
que a reunião aconteceu em Salvador pela segunda vez.




Identidades

O tema é cultura e identidade. Mas por que falar em identidade nacional no singular? Não há como entender, numa sociedade complexa como a nossa, uma identidade única. Estamos defendendo um país com diversidade, uma sociedade democrática que aceita o diverso, não o diferente, que é outra coisa -- a imagem invertida do eu. Por isso meu título menciona identidade no plural -- identidades.

Embora tendo sempre convivido com a diversidade, no Brasil se insistiu sempre apenas na unidade da cultura brasileira. O ideário do projeto nacional tendeu sempre a sonegar as contradições, os contrastes, o diverso. A ênfase no humanismo brasileiro, tão questionável hoje, seu bom-mocismo, que se associa à unidade real da língua e à presença generalizada do Catolicismo dá apoio ao propósito de afirmar uma identidade cultural nacional unitária. Em 1908, Afonso Celso publicou Porque me ufano do meu país. O livro teve trinta edições, o que demonstra a importância para a elite brasileira de construção de um conceito de identidade nacional. Em seguida, Paulo Prado, com Retrato do Brasil, embora pessimista, chama a atenção para a melancolia brasileira como qualidade nacional. E Sérgio Buarque de Holanda, que mais tarde produziria um livro de grande mérito, como Raízes do Brasil, nele insiste no homem cordial como caráter brasileiro. Em todos os casos, subentende-se uma unidade nacional dada de princípio. Essa construção de um conceito de cultura nacional singular não servirá à naturalização da exclusão, à exorcização da contradição e da transformação?

Parto da hipótese de que a afirmação da unidade cultural sustenta o projeto da elite brasileira de manter e alargar privilégios, negando o povo, mais tarde simbolizado no ex-escravo. E não o contrário, o de um projeto genuíno de unidade em que se reduzisse as distâncias entre elite e povo. Construir um conceito de identidade nacional una significa a negação das diferenças, um encegueiramento frente à realidade social brasileira. Sem dúvida, somos um país com um forte lastro unitário, mas também uma nação plural, embora um pluralismo que esperamos convergente, numa definição de Gilberto Freyre.

Após a Abolição, não se aproveitou o ex-escravo no trabalho livre por incapacidade, mas porque um trabalhador com a experiência de duzentos anos de Brasil trazia a capacidade de rapidamente crescer como sujeito político. O que se substituía ali não era um mau trabalhador, necessariamente incompetente, mas um trabalhador projeto de cidadão por outro que se esperava ter que levar muito tempo para se construir como tal. Melhor um imigrante zero-quilômetro, politicamente analfabeto, passível de se submeter a novas formas de servidão. Não surpreende que a Liga das Nações tenha recebido reclamações e houvesse movimentos contra a política de imigração brasileira e o mau-trato servido aos imigrantes. E quando se esgotaram ou dificultaram as levas de imigração européia, o Brasil aceitou a imigração japonesa, o asiático, a pior população do mundo na percepção dos países ocidentais na época. O brasileiro ex-escravo, não!

É necessário raciocinar com a idéia de pluralidade, tanto quanto é necessário não desvalorizar a importância da unidade. É esta assumida dialética entre unidade e pluralidade que poderá nos tornar um país democrático.

Os Hs da Bahia

Na crônica local há uma Bahia com H maiúsculo, nobre, cordial, que recebe seus pares com requintada, mas distante hospitalidade e que supõe uma Bahia sem "h". Minha segunda hipótese é que o código da Bahia com h minúsculo, da pobreza feliz que não come mas está bem, que mora mal mas é pitoresca, subcidadã, é agora parte de uma pauta nacional em formação, consistente com o projeto brasileiro de negar a diversidade, jogando num mesmo mar de malqueridos os baianos de todos os brasis .

Num país que vem se integrando cada vez mais pela economia e a comunicação, porém tornando-se mais complexo, os brasileiros de diferentes lugares e posições sociais precisam lidar de modo unívoco com parcelas diferentes dessa sociedade. A baianidade sem h, destinada ao baiano pobre, preto, humilde, introduz, num código nacional emergente, pauta comum de interlocução, uma retórica capaz de levar em conta as distinções de classe, numa linguagem de palavras e atos apropriada a lidar com o "zé-povinho", o "joão-ninguém". Da mesma forma que se introduzira e já se havia consagrado, a nível nacional, uma forma particular de tratamento entre burguesia e proletariado de um São Paulo moderno, locomotiva do desenvolvimento nacional, a Bahia sem h, ou h minúsculo, contribui hoje com a retórica das relações de exclusão ¾ sem h ¾ para tratar-se o baiano nacional. Na verdade, a baianidade vende bem e seu êxito deriva em parte de participar desse processo de construção de uma língua franca para falar Brasil de fora a fora.

A formação dessa língua franca tem também outras vertentes. Fala-se intensamente em algo também aparentemente arcaico, decantado por Afonso Arinos e por Tristão de Atayde, que é a mineiridade. Em campanha para presidente da República, Tancredo Neves dizia que Minas teria a oportunidade, com a ascensão que ele esperava do seu próprio grupo, de expor para o país a clarividência, o bom senso, o equilíbrio que sempre a caracterizou.

Nesse código nacional, a mineiridade funciona como a retórica de articulação de cúpula das elites e tem seu papel dentro de Minas Gerais, na agregação ou consolidação dos interesses da elite local; mas tem uma função, a nível nacional, de código de negociação nos círculos de poder .

Quem sabe o fracasso político do mineiro Aureliano Chaves não se deveu à sua falta de mineiridade? Jânio foi tudo menos mineiro. Fernando Collor certamente não perdeu o poder por conta de seu projeto tão próximo ao de Fernando H. Cardoso, mas graças à sua retórica e etiqueta política. Outros foram igualmente autocráticos, mas a Jânio e Collor faltaram as decantadas virtudes mineiras da negociação, da linguagem cifrada, das meias palavras e da temperança palaciana.

Com relação à Bahia, é sempre fundamental saber: Que Bahia? Qual a essência da Bahia? Para imaginar identidades, que contrastes, que semelhanças? O que há entre essência e existência, substrato e acidente, ser e dever nessa Bahia? De que Bahia se fala: a Bahia dos donos do poder, ou dos calados, dos decapitados pela escola, por uma cultura que nos nega a capacidade de pensar? Somos proibidos de proibir, mas somos também proibidos de refletir; decepados e, de algum modo, proibidos de amar e de odiar. Hoje baianos têm aprendido a ser mineiros em Brasília, mas cariocas, paulistas, mineiros e outros dentro de casa tratam, cada vez mais, seu "zé-povinho" à baiana.

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