"A diversidade cultural está visível em nossa língua: em seus ritmos, estruturas sintáticas, vocabulário etc. Na Bahia, especificamente, a língua aparece mesclada com o léxico africano, principalmente o iorubá, que não se estendeu ao resto do Brasil, de um modo geral."

 

 

 

Evelina Hoisel
Diretora do Instituto de Letras da UFBA

e-endereço: hoisel@ufba.br


Na sua opinião, qual a importância de uma discussão sobre identidade cultural, na Bahia e no Brasil, hoje em dia?

Do ponto de vista desta reflexão cultural que antecede o Congresso da SBPC na Bahia e que está sendo articulado pela UFBA, considero muito profícua a discussão da identidade cultural hoje. Trata-se de uma revisão crítica da nossa memória, da nossa constituição histórica, focalizando, dentro desta proposta, a questão da Bahia - o que é a Bahia? - e da Cidade do Salvador - que lugar é este? Local de entrecruzamentos, de múltiplas etnias, de elementos culturais distintos que agora suscitam uma reavaliação, uma revaloração; a Bahia é este lugar de raízes ancestrais muito propício ao questionamento de configurações identitárias.

Na versão de uma história do Brasil que se inicia em 1500 e se propaga até o final do século19, ou até mesmo no final do século 20, a Bahia é uma espécie de matriz do Brasil, não apenas no sentido de ter sido a terra-mater do Brasil, o local onde chegaram os portugueses, onde começou a se constituir uma determinada história - que nós conhecemos tal como nos foi contada - como também no sentido de ser a matriz da nossa primeira identidade pela superposição de raças, etnias e culturas, desde o início da colonização. Em outras regiões do Brasil também se encontra essa superposição de nacionalidades, de culturas, de línguas, formando outras complexas matrizes que compõem o vasto mosaico chamado Brasil; mas ali o processo foi mais recente, um produto da imigração européia e asiática. A matriz cultural da Bahia é mais antiga, mais diversificada e mais heterogênea: o índio, o português e o negro mesclam-se desde o século 16, produzindo um amplo espectro de mulatos, caboclos e cafusos que podem ser considerados o estrato mais ancestral da nossa composição étnica. Nós hoje reinterpretamos essa história e, reinterpretando-a, revemos também nosso processo identitário: que diálogos e que recalques foram registrados, que elementos foram trazidos à cena de uma determinada historiografia e que aspectos foram recalcados, relegados, neste mesmo cenário. Hoje, pensar "Bahia, Bahia, que lugar é este?" é uma possibilidade de rever essas marcas do nosso processo histórico, que aqui, na Bahia, cheia de conflitos e entrecruzamentos, são muito fortes.

Na área de Letras daqui, de que formas as questões culturais, num sentido amplo, estão presentes?

O principal objeto de investigação no Instituto de Letras, o que aqui se ensina nos diversos cursos ou o que aqui se pesquisa através dos diversos projetos, é a língua, a linguagem. É neste componente social - a linguagem - que as marcas culturais se fazem presentes e é onde a história de um povo se constitui e se manifesta. Nós lidamos com as representações simbólicas. Uma das formas de lidar com isso é através da língua - a língua portuguesa - procurando compreender a diversidade lingüística no Brasil e na Bahia.

O Instituto de Letras está coordenando a elaboração do Atlas Lingüístico do Brasil - ALIB -, amplo projeto, do qual participam várias universidades brasileiras, cujo objetivo é fazer o mapeamento dessa diversidade lingüística. Mas, para estudar a diversidade do português no Brasil, é necessário confrontá-lo com a diversidade do português de Portugal e de outras regiões: as mudanças ocorridas durante o processo de constituição lingüística dizem também de uma construção histórica, social e cultural de um povo, de uma nação. Uma reconstrução histórica da língua portuguesa, como a que é realizada por um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras, revela questões importantes sobre esta problemática. Temos desenvolvido programas conjuntos com universidades portuguesas e outros centros do mundo lusófono. Temos um projeto de pesquisa que estuda as interrelações culturais com a Galícia, mapeando as palavras galegas registradas no cenário de Salvador, em nomes de pessoas, ruas, casas comerciais, etc. Mas temos também estudos sobre a interação com as línguas africanas e sua contribuição sócio-histórica para o português falado no Brasil.Tudo isso é uma possibilidade de compreendermos determinados trânsitos e migrações, responsáveis pela formação de nossa identidade cultural.

Mas tudo isso pode ser observado também através da literatura, que é uma outra via de estudo e compreensão da linguagem. Temos grupos de pesquisa que trabalham com a questão da identidade cultural e as reconstruções imaginárias. Grupos que trabalham com questões de gênero, investigando a presença da mulher na literatura e na cultura da Bahia. Temos pesquisas sobre a permanência e a ruptura de tradições orais e populares no nosso contexto. Através dessas representações, focalizadas através da linguagem literária, podemos perceber a circulação de valores sociais, localizar focos de resistência cultural, de conflitos e de diálogos entre raças e tradições. Todas essas questões podem ser pensadas a partir da língua e da literatura.

O que a Bahia tem de tão específico? Com relação à língua, por exemplo, que características são mais fortes, o que demonstra essa impossibilidade de se falar em uma única cultura?
A diversidade cultural está visível em nossa língua: em seus ritmos, estruturas sintáticas, vocabulário etc. Na Bahia, especificamente, a língua aparece mesclada com o léxico africano, principalmente o iorubá, que não se estendeu ao resto do Brasil, de um modo geral. São palavras associadas a uma imagem muito marcada da Bahia e que estão presentes em rituais religiosos de comunidades afro-baianas, na nossa culinária, na música de Caymmi, transbordando para Caetano, Gil e exemplos mais recentes da música popular. Esta é uma referência ao que tem sido considerado como baianidade, como algo singular em relação ao resto do Brasil. Entretanto, do ponto de vista de uma descrição estritamente lingüística, esta especificidade ainda está sendo estudada.

Podemos perceber exemplos dessa diversidade na nossa produção artística? Em que autores, artistas, grupos, ela se faz presente?

Percebe-se isto, com nitidez, na literatura. Para cada texto pode ser feito um estudo específico. João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, em Viva o povo brasileiro, fornece uma visão anárquica da nossa cultura, uma recriação satírica dessa multiplicidade que se sustenta através dos variados falares, que recuperam o que poderia ter sido efetivamente uma linguagem viva em outras épocas da nossa história. Viva o povo brasileiro percorre diversos episódios da história do Brasil e da Bahia, mas refaz este percurso antropofagicamente, uma antropofagia encontrada também na música pop tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil ou no cinema de Glaúber Rocha. É um olhar irônico, um olhar que reverte valores, deslocando aquilo que foi historicamente estabelecido pela cultura européia, enquanto referência central para definir a nossa construção identitária. Todas essas produções têm possibilitado refletir sobre a re-construção de nossa identidade, isto é, buscar o re-conhecimento dos sujeitos envolvidos no processo histórico, social e cultural, sem privilegiar um segmento em detrimento do outro, como faziam as interpretações etnocêntricas.

São muitas as produções que tratam dessas questões culturais aqui na Bahia. Os trânsitos com as culturas afro e indígena aparecem constantemente em produções literárias e não literárias - música, dança, teatro, artes plásticas (e lembro aqui a exuberante pintura de Chico Liberato) - que apresentam imagens e representações da Bahia, da cidade do Salvador, de tipos humanos, de uma mitologia, etc. Hoje, há uma preocupação com a questão das diferenças culturais, no sentido de entender melhor como elas se constituíram através de suas múltiplas representações simbólicas.

Atualmente, que temas e formas se manifestam mais claramente, enquanto reveladores desse processo histórico?

Hoje, uma temática muito presente é a da herança africana, posta em circulação principalmente pela música popular, mas também pela literatura. Eu acho que nós temos que entender essa questão relacionada à música por diversos ângulos, porque há também uma "folclorização" do tema imposta pelas forças do mercado, pela mídia e pelo turismo, mas não é disso que eu estou falando. Isso ocorre por um processo de apropriação muito comum no âmbito dos mass media e que nós devemos procurar compreender. Entretanto, acima das forças que estão acionando todos esses aparatos, há uma questão muito mais forte em relação ao negro, a essa etnia, presente tanto na música, como na literatura: a necessidade de avaliar, segundo sua própria ótica, a sua inserção no processo histórico e social. Não é difícil a compreensão dessa necessidade, se se considera o processo sócio-cultural do negro: um processo de desenraizamento, de privações, de violência, de desvalorização de tudo aquilo que o constitui como ser humano - padrões de comportamento, crenças, valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente, isto é, a sua cultura.

Nessa área de estudos, relacionando língua e identidade, que autores, obras ou teorias podem ser citados como referências?

Alguns nomes são referências importantes para questões de identidade: Stuart Hall, Homi Bhabha, Nestor Canclini, Moniz Sodré, Roberto Reis. Para as questões relacionadas ao negro, na Bahia, temos os estudos realizados pelo CEAO, com uma vasta publicação. No Instituto de Letras, temos também pesquisadores que estudam esta temática, tanto do ponto de vista da língua, quanto da literatura.

Apoio:

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