"A Academia pode dar uma contribuição tentando argumentar que não estamos perante algo que seja "o real" ou "o mais objetivo possível"; ou seja, caindo no discurso, que é o discurso fácil, do reforço da tradição, do reforço de que há uma identidade baiana. Mas que identidade baiana? Se é um Estado majoritariamente negro, você não pode pensar somente numa Bahia marcada - como aparece na mídia, no discurso inclusive de intelectuais - de movimentos, como um Estado em que determinadas manifestações, como candomblé ou capoeira, sejam mais representativas. Existem dezenas de grupos de pagode, por exemplo, na periferia, produzidos por justamente essa parcela da população, que é a maioria. Não só de pagode, mas de rap, e por aí a gente vai elencar uma série de manifestações, o que responde a uma diversidade interna a esse Estado, que não é homogêneo."

 

 

 

Jocélio Teles
Professor de Antropologia da UFBA
Coordenador do Programa A Cor da Bahia

contato: jocelio@ufba.br


É possível falar em identidade cultural? E, em caso positivo, que identidade seria essa?

É possível falar em identidade, acho eu, mas se você pensa identidade como construção. Você tem uma construção inclusive do que é a Bahia, do que é a baianidade. E também tem uma construção acerca do que seja o Estado mais negro ou a cidade mais negra das Américas, porque se fôssemos comparar, por exemplo, com cidades mesmo de pequeno porte que se situam ao longo da costa do pacífico, cidadezinhas no Equador, principalmente, você tem uma população maior do que 80% de negros e mestiços. Portanto, há uma imagem sobre a Bahia que a Bahia alimenta, se realimenta e dirige, não só para um público externo, de uma identidade cultural forte negra, mas também de uma Bahia que faz dessa identidade um canal de negociação, de afirmação, seja no âmbito brasileiro ou fora do Brasil. Ou seja, aquela cidadezinha - e são várias- que tem mais do que 90% de população negra é completamente suplantada pela imagem de uma Bahia que é 80% negra, por conta de toda a tradição de uma cultura que se quer sempre tradicional, mesmo incorporando elementos mais modernos ou pós-modernos.

Fale um pouco sobre o Programa A Cor da Bahia.

Esse programa surgiu em 1993 e a preocupação foi criar um programa não só de apoio à pesquisa, mas com a preocupação da formação de alunos que são, no âmbito dessa desigualdade, inclusive dentro da universidade, os mais excluídos. De 1993 a 1995, nós direcionamos as pesquisas para as desigualdades entre brancos e negros no mercado de trabalho. A pesquisa era de cunho quantitativo, mas também qualitativo, e a preocupação era tentar entender como a população branca, que representa 20% do Estado, da capital, (e a população negra e mestiça, 80%) se comporta no mercado de trabalho, dos setores mais informais aos setores de chefia, por exemplo, em grandes empresas. De 1995 a 1997, a tendência foi tentar entender como essas desigualdades aconteciam no âmbito da educação formal e de uma educação alternativa, com essas experiências que o final dos anos 80 começam a mostrar de termos alternativas pedagógicas ao ensino formal, oficial. E aí a gente chegou à pesquisa, que era tentar mapear, nas universidades, tomando em primeiro lugar a UFBA, como é que havia distribuição por cursos, por área e também por gênero, como é que essa população negra que entra se distribui, porque até então não havia nenhuma informação, nem nas Universidades, nem no Governo Federal, ou seja, nenhuma instância sabia o percentual desses contingentes populacionais no âmbito das Universidades. Havia muito chutômetro, então se falava: "os negros são 3% da população universitária". Quando a gente aplicou a pesquisa aqui na UFBA, que depois alargamos para mais 4 universidades, o resultado é que há uma distribuição desigual, mas, a depender de que cursos você visualiza, essa presença pode ser mais ínfima ou mais representativa. Se você pega Comunicação, ou Direito, ou Medicina, ou cursos como as Licenciaturas, você vê uma desigualdade na entrada. E a partir dessa pesquisa da UFBA, em 1997, nós fizemos uma comparação com os alunos que ingressaram no primeiro semestre de 2000 na Universidade Federal do Paraná, Federal do Maranhão, Federal do Rio de Janeiro e Unb, na tentativa de compreender como se dava essa desigualdade no ingresso nas cinco Universidades Federais (incluindo a nossa) consideradas de prestigio, verificando se havia uma certa mobilidade em alguns cursos, ou mesmo como isso podia ser observado em Estados cuja população negra é maioria ou Estados cuja população negra é minoria, como no caso do Paraná, ou em menor escala o Rio de Janeiro, com menos de 50% da população negra ou mestiça. Essa pesquisa a gente fechou, está sendo lançado mais um volume no segundo semestre. Nesse momento eu estou interessado em tentar entender como essa população negra começa a aparecer nos jornais no século XX, então estou fazendo uma pesquisa bastante interessante, fazendo um levantamento de todos os jornais editados em Salvador a partir de 1900. Há uma maior diversidade do número de jornais, e é impressionante como Salvador, hoje reduzida a 3 jornais, tem, em 1900, mais de 10 jornais bastante significativos em termos da forma como constróem a notícia. Então a gente está fazendo uma espécie de inventário de fontes, de 1900 a 2000, com o que aparece sobre essa população, desde críticas ou repressão a manifestações como o candomblé, a capoeira, etc, à própria linguagem. A nossa homepage (www.ufba.br/~acordaba) tem várias informações não só sobre as nossas publicações, mas também sobre cursos de extensão que a gente tem dado para um público que não seja da UFBA.

Que relação se pode fazer entre a Academia e a identidade cultural? Que contribuições ela pode oferecer nesse sentido?

Eu acho que a Academia pode dar uma contribuição tentando argumentar que não estamos perante algo que seja "o real", ou "o mais objetivo possível", ou seja, caindo no discurso, que é o discurso fácil, do reforço da tradição, do reforço de que há uma identidade baiana. Mas que identidade baiana? Se é um Estado majoritariamente negro, você não pode pensar somente numa Bahia marcada, como aparece na mídia, no discurso inclusive de intelectuais, de movimentos, como um Estado em que determinadas manifestações, como candomblé ou capoeira, sejam mais representativas. Existem dezenas de grupos de pagode, por exemplo, na periferia, produzidos por justamente essa parcela da população, que é a maioria. Não só de pagode, mas de rap, e por aí a gente vai elencar uma série de manifestações, o que responde a uma diversidade interna a esse Estado, que não é homogêneo. O problema é que, para se construir a identidade, os grupos ou as sociedades apelam muito para o recurso da tradição, como se fosse o que dá mais legitimidade. O Estado reforça isso aqui na Bahia, a partir dos anos 60, mais enfaticamente nos anos 70, quando há política de desenvolvimento e política de turismo, fomentada pelo Estado. Então sem dúvida é importante a reflexão da Academia, no âmbito da Universidade, mas eu acredito que todo cuidado na reflexão deve ser mantido para não ficarmos reproduzindo, na verdade, concepções que são ideológicas, seja de que lado vier.

E a cultura negra e a diversidade estão bem representadas, por exemplo, na mídia?

Não se você observa o que a mídia divulga. Quer dizer.. de que mídia a gente está falando? Se é o canal de televisão, o canal de televisão chamado Record não reproduz essa cultura negra como a TV Bahia, no tocante, por exemplo, a candomblé, posto que as imagens de candomblé para os adeptos da Universal do Reino de Deus, que dominam a Record, são "demonizadas". De que parte da mídia a gente está falando? Porque a gente está falando de uma mídia que é mais hegemônica do que outras. A TVE vai no mesmo caminho - estou pensando só em termos de emissoras de televisão. O que a mídia reproduz é uma idéia hegemônica construída não só no âmbito da própria mídia mas numa profunda associação com imagens veiculadas há mais de 30 anos, por governos, elites políticas, elites econômicas, intelectuais, e aí a gente pode colocar de Jorge Amado até João Ubaldo Ribeiro, e outros intelectuais no âmbito da Academia e da Universidade Federal da Bahia, e também desses ícones da MPB, de Dorival Caymmi até Daniela Mercury, se você quiser puxar para os últimos quinze anos.

O que acaba revertendo na reconstrução dessa identidade...

Com certeza, porque essa identidade não é estática, não é imóvel, não é imutável. Ela vai sendo remodelada, a depender do lugar de quem está produzindo o discurso sobre ela. Fala-se em identidade nagô. Essa é mais uma prova de como determinada nação do candomblé foi eleita como a mais legítima, a tradução do terreiro do Gantois, a tradução do que é o terreiro do Engenho Velho chamado Casa Branca. Eu acredito também que cada vez mais, com a politização ocorrida nos últimos quinze, vinte anos, no máximo, há um embate dessas imagens, mas de algum modo as pessoas reproduzem discursos que são próximos, o que não quer dizer que sejam os mesmos discursos.

Que trabalhos acadêmicos você citaria nessa linha de interesse?

Produzido aqui, a gente tem um livro chamado "Ritmos em Transito", que foi uma tentativa de entender a música baiana, numa reflexão da antropologia e da sociologia, que até então não se tinha. Produz-se muito pouco em termos de reflexão sobre música, quer dizer, se produz muita música no Estado, mas se reflete muito pouco, pouco foi pesquisado. Há uma produção considerável nos últimos dez anos, que passa não só pela Faculdade de Filosofia, mas também pela Faculdade de Comunicação e pela Escola de Música. Então a observação que a gente fazia era perguntar: que música baiana é essa? Que música negra? Porque tanto o pagode quanto a música produzida pelos crentes, com seus reggaes do Senhor, que não são os reggaes do Adão Negro ou de Edson Gomes, podem ser enquadrados como música negra. Não se pode reduzir a música negra somente a uma vertente do axé, ou pensar que a música negra é candomblé, ou que a música negra é só reggae, ou só samba. Pensar isso é fazer da cultura um molde tão rígido que a gente não percebe que tudo está sendo construído. As sociedades avançam nesse sentido, se é que elas avançam (risos).

Em termos artísticos, que grupos ou artistas você consideraria representativos da identidade baiana, atualmente?

Como eu disse, para mim essa identidade não é nada imutável. Na representação do que seja essa identidade cultural baiana, pode passar de Riachão a Adão Negro, ou da música no interior do Candomblé, ou mesmo o rap lá da periferia, ou o pagode de Pernambués, ou seja, você tem uma diversidade bastante significativa.

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