| É possível falar em identidade cultural? E, em 
              caso positivo, que identidade seria essa?
  É possível 
              falar em identidade, acho eu, mas se você pensa identidade 
              como construção. Você tem uma construção 
              inclusive do que é a Bahia, do que é a baianidade. 
              E também tem uma construção acerca do que seja 
              o Estado mais negro ou a cidade mais negra das Américas, 
              porque se fôssemos comparar, por exemplo, com cidades mesmo 
              de pequeno porte que se situam ao longo da costa do pacífico, 
              cidadezinhas no Equador, principalmente, você tem uma população 
              maior do que 80% de negros e mestiços. Portanto, há 
              uma imagem sobre a Bahia que a Bahia alimenta, se realimenta e dirige, 
              não só para um público externo, de uma identidade 
              cultural forte negra, mas também de uma Bahia que faz dessa 
              identidade um canal de negociação, de afirmação, 
              seja no âmbito brasileiro ou fora do Brasil. Ou seja, aquela 
              cidadezinha - e são várias- que tem mais do que 90% 
              de população negra é completamente suplantada 
              pela imagem de uma Bahia que é 80% negra, por conta de toda 
              a tradição de uma cultura que se quer sempre tradicional, 
              mesmo incorporando elementos mais modernos ou pós-modernos. Fale um pouco 
              sobre o Programa A Cor da Bahia.  Esse programa 
              surgiu em 1993 e a preocupação foi criar um programa 
              não só de apoio à pesquisa, mas com a preocupação 
              da formação de alunos que são, no âmbito 
              dessa desigualdade, inclusive dentro da universidade, os mais excluídos. 
              De 1993 a 1995, nós direcionamos as pesquisas para as desigualdades 
              entre brancos e negros no mercado de trabalho. A pesquisa era de 
              cunho quantitativo, mas também qualitativo, e a preocupação 
              era tentar entender como a população branca, que representa 
              20% do Estado, da capital, (e a população negra e 
              mestiça, 80%) se comporta no mercado de trabalho, dos setores 
              mais informais aos setores de chefia, por exemplo, em grandes empresas. 
              De 1995 a 1997, a tendência foi tentar entender como essas 
              desigualdades aconteciam no âmbito da educação 
              formal e de uma educação alternativa, com essas experiências 
              que o final dos anos 80 começam a mostrar de termos alternativas 
              pedagógicas ao ensino formal, oficial. E aí a gente 
              chegou à pesquisa, que era tentar mapear, nas universidades, 
              tomando em primeiro lugar a UFBA, como é que havia distribuição 
              por cursos, por área e também por gênero, como 
              é que essa população negra que entra se distribui, 
              porque até então não havia nenhuma informação, 
              nem nas Universidades, nem no Governo Federal, ou seja, nenhuma 
              instância sabia o percentual desses contingentes populacionais 
              no âmbito das Universidades. Havia muito chutômetro, 
              então se falava: "os negros são 3% da população 
              universitária". Quando a gente aplicou a pesquisa aqui 
              na UFBA, que depois alargamos para mais 4 universidades, o resultado 
              é que há uma distribuição desigual, 
              mas, a depender de que cursos você visualiza, essa presença 
              pode ser mais ínfima ou mais representativa. Se você 
              pega Comunicação, ou Direito, ou Medicina, ou cursos 
              como as Licenciaturas, você vê uma desigualdade na entrada. 
              E a partir dessa pesquisa da UFBA, em 1997, nós fizemos uma 
              comparação com os alunos que ingressaram no primeiro 
              semestre de 2000 na Universidade Federal do Paraná, Federal 
              do Maranhão, Federal do Rio de Janeiro e Unb, na tentativa 
              de compreender como se dava essa desigualdade no ingresso nas cinco 
              Universidades Federais (incluindo a nossa) consideradas de prestigio, 
              verificando se havia uma certa mobilidade em alguns cursos, ou mesmo 
              como isso podia ser observado em Estados cuja população 
              negra é maioria ou Estados cuja população negra 
              é minoria, como no caso do Paraná, ou em menor escala 
              o Rio de Janeiro, com menos de 50% da população negra 
              ou mestiça. Essa pesquisa a gente fechou, está sendo 
              lançado mais um volume no segundo semestre. Nesse momento 
              eu estou interessado em tentar entender como essa população 
              negra começa a aparecer nos jornais no século XX, 
              então estou fazendo uma pesquisa bastante interessante, fazendo 
              um levantamento de todos os jornais editados em Salvador a partir 
              de 1900. Há uma maior diversidade do número de jornais, 
              e é impressionante como Salvador, hoje reduzida a 3 jornais, 
              tem, em 1900, mais de 10 jornais bastante significativos em termos 
              da forma como constróem a notícia. Então a 
              gente está fazendo uma espécie de inventário 
              de fontes, de 1900 a 2000, com o que aparece sobre essa população, 
              desde críticas ou repressão a manifestações 
              como o candomblé, a capoeira, etc, à própria 
              linguagem. A nossa homepage (www.ufba.br/~acordaba) tem várias 
              informações não só sobre as nossas publicações, 
              mas também sobre cursos de extensão que a gente tem 
              dado para um público que não seja da UFBA.  Que relação 
              se pode fazer entre a Academia e a identidade cultural? Que contribuições 
              ela pode oferecer nesse sentido?  Eu acho que 
              a Academia pode dar uma contribuição tentando argumentar 
              que não estamos perante algo que seja "o real", 
              ou "o mais objetivo possível", ou seja, caindo 
              no discurso, que é o discurso fácil, do reforço 
              da tradição, do reforço de que há uma 
              identidade baiana. Mas que identidade baiana? Se é um Estado 
              majoritariamente negro, você não pode pensar somente 
              numa Bahia marcada, como aparece na mídia, no discurso inclusive 
              de intelectuais, de movimentos, como um Estado em que determinadas 
              manifestações, como candomblé ou capoeira, 
              sejam mais representativas. Existem dezenas de grupos de pagode, 
              por exemplo, na periferia, produzidos por justamente essa parcela 
              da população, que é a maioria. Não só 
              de pagode, mas de rap, e por aí a gente vai elencar uma série 
              de manifestações, o que responde a uma diversidade 
              interna a esse Estado, que não é homogêneo. 
              O problema é que, para se construir a identidade, os grupos 
              ou as sociedades apelam muito para o recurso da tradição, 
              como se fosse o que dá mais legitimidade. O Estado reforça 
              isso aqui na Bahia, a partir dos anos 60, mais enfaticamente nos 
              anos 70, quando há política de desenvolvimento e política 
              de turismo, fomentada pelo Estado. Então sem dúvida 
              é importante a reflexão da Academia, no âmbito 
              da Universidade, mas eu acredito que todo cuidado na reflexão 
              deve ser mantido para não ficarmos reproduzindo, na verdade, 
              concepções que são ideológicas, seja 
              de que lado vier. E a cultura 
              negra e a diversidade estão bem representadas, por exemplo, 
              na mídia?  Não 
              se você observa o que a mídia divulga. Quer dizer.. 
              de que mídia a gente está falando? Se é o canal 
              de televisão, o canal de televisão chamado Record 
              não reproduz essa cultura negra como a TV Bahia, no tocante, 
              por exemplo, a candomblé, posto que as imagens de candomblé 
              para os adeptos da Universal do Reino de Deus, que dominam a Record, 
              são "demonizadas". De que parte da mídia 
              a gente está falando? Porque a gente está falando 
              de uma mídia que é mais hegemônica do que outras. 
              A TVE vai no mesmo caminho - estou pensando só em termos 
              de emissoras de televisão. O que a mídia reproduz 
              é uma idéia hegemônica construída não 
              só no âmbito da própria mídia mas numa 
              profunda associação com imagens veiculadas há 
              mais de 30 anos, por governos, elites políticas, elites econômicas, 
              intelectuais, e aí a gente pode colocar de Jorge Amado até 
              João Ubaldo Ribeiro, e outros intelectuais no âmbito 
              da Academia e da Universidade Federal da Bahia, e também 
              desses ícones da MPB, de Dorival Caymmi até Daniela 
              Mercury, se você quiser puxar para os últimos quinze 
              anos. O que acaba 
              revertendo na reconstrução dessa identidade...  Com certeza, 
              porque essa identidade não é estática, não 
              é imóvel, não é imutável. Ela 
              vai sendo remodelada, a depender do lugar de quem está produzindo 
              o discurso sobre ela. Fala-se em identidade nagô. Essa é 
              mais uma prova de como determinada nação do candomblé 
              foi eleita como a mais legítima, a tradução 
              do terreiro do Gantois, a tradução do que é 
              o terreiro do Engenho Velho chamado Casa Branca. Eu acredito também 
              que cada vez mais, com a politização ocorrida nos 
              últimos quinze, vinte anos, no máximo, há um 
              embate dessas imagens, mas de algum modo as pessoas reproduzem discursos 
              que são próximos, o que não quer dizer que 
              sejam os mesmos discursos. Que trabalhos 
              acadêmicos você citaria nessa linha de interesse?  Produzido aqui, 
              a gente tem um livro chamado "Ritmos em Transito", que 
              foi uma tentativa de entender a música baiana, numa reflexão 
              da antropologia e da sociologia, que até então não 
              se tinha. Produz-se muito pouco em termos de reflexão sobre 
              música, quer dizer, se produz muita música no Estado, 
              mas se reflete muito pouco, pouco foi pesquisado. Há uma 
              produção considerável nos últimos dez 
              anos, que passa não só pela Faculdade de Filosofia, 
              mas também pela Faculdade de Comunicação e 
              pela Escola de Música. Então a observação 
              que a gente fazia era perguntar: que música baiana é 
              essa? Que música negra? Porque tanto o pagode quanto a música 
              produzida pelos crentes, com seus reggaes do Senhor, que não 
              são os reggaes do Adão Negro ou de Edson Gomes, podem 
              ser enquadrados como música negra. Não se pode reduzir 
              a música negra somente a uma vertente do axé, ou pensar 
              que a música negra é candomblé, ou que a música 
              negra é só reggae, ou só samba. Pensar isso 
              é fazer da cultura um molde tão rígido que 
              a gente não percebe que tudo está sendo construído. 
              As sociedades avançam nesse sentido, se é que elas 
              avançam (risos). Em termos 
              artísticos, que grupos ou artistas você consideraria 
              representativos da identidade baiana, atualmente?  Como eu disse, 
              para mim essa identidade não é nada imutável. 
              Na representação do que seja essa identidade cultural 
              baiana, pode passar de Riachão a Adão Negro, ou da 
              música no interior do Candomblé, ou mesmo o rap lá 
              da periferia, ou o pagode de Pernambués, ou seja, você 
              tem uma diversidade bastante significativa. |