Grupo de Teatro AMPLA
Materia realizada com o grupo e
uma das diretoras da associção


Antes arte do que nunca

O dicionário prevê uma conotação pejorativa para a palavra "suburbano": aquele que tem ou revela mau gosto. Na contramão do estereótipo, no entanto, associações comunitárias e grupos formados principalmente por jovens de baixa renda combatem o preconceito produzindo arte. É este o caso da AMPLA (Associação de Moradores de Plataforma), que busca valorizar a parte menos privilegiada da cidade promovendo atividades culturais junto a comunidades do subúrbio ferroviário de Salvador. Criada em 1977, a associação desenvolve atividades como tecelagem, escultura em madeira, capoeira, dança e teatro, na tentativa de desconstruir a idéia de que onde predomina a pobreza não há lugar para a informação e a cultura.

Joseane Santos, uma das cinco diretoras da associação, revela que a proposta inicial da AMPLA era construir um Centro Cultural no bairro, que servisse de referência para o todo o subúrbio e que fosse não somente um espaço para o desenvolvimento da arte, mas também uma alternativa de emprego e renda para a própria comunidade. Mas, segundo ela, todas as reivindicações feitas pela associação para concretizar a idéia foram inviabilizadas por pura falta de vontade política. "Os poderes públicos não têm interesse em investir na cultura, querem as pessoas alienadas", resume Joseane.

Situação semelhante ocorreu quando da criação da primeira rádio comunitária do bairro, que foi lacrada pela Polícia Federal por ordem judicial conseguida pela Anatel. Até hoje, Joseane Santos, como representante da AMPLA, precisa comprovar periodicamente que a rádio não voltou ao ar, ainda que se saiba que seu funcionamento nunca prejudicaria outros sistemas de comunicação, já que trabalha em uma freqüência de transmissão completamente diferente. A história se repete ainda com relação ao Cine-Teatro do bairro, que teve o prédio condenado pela CONDER em 1982 e nunca foi reaberto, embora a AMPLA tenha feito um orçamento e reivindicado a reforma do local em parceria com a Ufba e outras organizações. Hoje, os moradores estão proibidos de visitar o local, mas há quem garanta que a estrutura do prédio continua intacta, inclusive o palco e as cadeiras utilizadas para a apresentação de filmes e espetáculos.

Mas a despeito de qualquer entrave burocrático, a comunidade de Plataforma tem do que se orgulhar quando o assunto é produção artística. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas da AMPLA nesse sentido está sendo o Grupo Espaço Livre Para o Teatro, fundado há cinco anos em parceria com a Ufba e a DKA, organização não-governamental com sede na Áustria. O grupo é coordenado por Ângelo Serpa e já comemora a montagem de seu quarto espetáculo, Deus suburbano, contando com a direção de Márcio Lima e Ivana Chastinet.

Desde o início do projeto, já foram encenadas as peças O vendedor de sonhos, A terra, e O buraco do lixo, sempre com entrada gratuita e privilegiando antes de mais nada a participação do público local. Fazem parte do elenco doze jovens originários da própria comunidade que freqüentam aulas gratuitas de teatro três vezes por semana. Com a ajuda de profissionais da área, eles aprendem e aperfeiçoam técnicas ligadas à expressão corporal, movimento de palco e uso da voz, além de trabalharem com autores clássicos, como Brecht.

Giulivan Santana, de 19 anos, faz parte do grupo desde 1996. Quando fala em cultura baiana, lembra de manifestações que mobilizam multidões, como a axé music, e lamenta que o teatro não seja tão reconhecido enquanto manifestação cultural. Mas o jovem ator não tem dúvida de que o caminho da arte vale a pena. "Quero palco, luz e as pessoas me assistindo", define. Greice Matos, de 21, vê a cultura baiana como "uma grande confusão", pois "está relacionada com diversas outras culturas que chegaram aqui", explica. Ela enfatiza que há discriminação com relação ao teatro, mas confessa ter encontrado na arte dos palcos uma forma de terapia. Além de atriz, Greice canta na Garotos do Amor, banda formada por iniciativa de Maria do Carmo Calmon, também moradora do bairro.

"O governo quer que o povo suburbano fique cada vez mais burro", dispara Vitor Veloso, 17 anos, um dos monitores do grupo. Ele é outro que encontra na arte uma forma de emancipação e participa também das oficinas de tecelagem da AMPLA. Mas Vitor elegeu o teatro como sua grande paixão desde muito novo. Aos 10 anos de idade, ele já trabalhava ajudando a tia a vender roupas para investir em aulas de interpretação. Vera Cerqueira, 18 anos, também ajuda a conduzir o trabalho do grupo na ausência dos diretores. Atualmente, Vera mora em um bairro do "centro" e pega quatro ônibus para participar das aulas em Plataforma, mas a dificuldade não a desanima. "Não vou abdicar de uma coisa que gosto tanto só porque moro longe", justifica.

Esses jovens têm algo em comum, além de terem nascido num lugar desde sempre desprovido de privilégios. São novos cidadãos dispostos a reafirmar suas raízes e mostrar, através da arte, que a periferia não se resume ao estereótipo da pobreza, marginalidade e alienação. O Grupo Espaço Livre para o Teatro, assim como outras iniciativas nascidas à margem do mercado cultural da cidade, invadem a cena para mostrar a quem quiser ver que não apenas na academia há lugar para inteligência, imaginação e talento.

Ferida histórica

Primeiro bairro do subúrbio ferroviário de Salvador, Plataforma tem uma história que surpreende. Antes de os portugueses desembarcarem em terras brasileiras, tudo não passava de uma porção de terra estrategicamente localizada entre a Baía de Todos os Santos e a hoje chamada cidade alta. Tempos depois, foi esse pedaço de terra que a tradicional família Martins Catarino transformou em uma gigantesca fazenda, onde instalou seu mais valioso patrimônio na época: uma fábrica têxtil então chamada de União Fabril. Além da mansão dos Catarino, o que havia de residências naquele lugar se resumia à Vila Operária, um conjunto de casas modestas pertencentes aos então donos da terra, onde moravam os próprios trabalhadores da fábrica, a maioria imigrantes.

O aumento da população local, com o passar dos anos, fez a vila se expandir gradativamente, até se transformar no que Plataforma é hoje, um bairro com 50.000 habitantes. Mas o que parece ter sido um grande salto no desenvolvimento da comunidade e da própria cidade de Salvador, acaba contrastando com um problema herdado do período em que o bairro era apenas lugar de passagem. Centenas de anos depois, cerca de 80% dos moradores de Plataforma continuam sendo obrigados a pagar uma taxa anual pela utilização do solo, mesmo os que moram em casas próprias, pois continuam sendo considerados inquilinos dos Martins Catarino.

De acordo com Joseane Santos, não se tem notícia de nenhum documento oficial que reconheça a família como legítima proprietária da terra atualmente. O que há são relações de poder que se solidificaram ao longo dos anos e se perpetuam dia após dia, ignorando solenemente qualquer reivindicação baseada na lei. Na década de 90, a AMPLA chegou a entrar com uma ação judicial contra a família Catarino e conseguiu convencer boa parte dos moradores de Plataforma a não pagar a taxa anual. O fato gerou repercussão, inclusive na mídia, mas pouco se evoluiu na tentativa de solucionar a questão. Tempos depois, a Secretaria de Terras, órgão no qual tramitava o processo, foi extinta e nunca mais se soube do andamento do processo.

Hoje, o que se sabe é que os Martins Catarino continuam se auto-legitimando como verdadeiros donos da terra e, ainda que não disponham de legitimidade legal, conseguem mobilizar até mesmo a polícia para constranger os moradores a pagar para permanecer no bairro.Esse conflito, presente desde a origem, é algo que oferece ao bairro de Plataforma uma história realmente peculiar e é louvável o caminho escolhido como alternativa a essa velha ordem. Joseane Santos diz algo emblemático dessa nova disposição: "Não sei de que forma eu vou contribuir, mas eu quero mudar esse sistema". Os caminhos são claramente tortuosos e fórmulas não há, mas a AMPLA e seus jovens atores dão uma lição - antes arte do que nunca.

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