Auto-Entrevista
Por que conectar a programação cultural a uma discussão?
Fiz essa proposta por várias razões. Num evento de
porte acadêmico como a Reunião Anual da SBPC a programação
artística precisa contribuir para a espinha dorsal da empreitada.
O desafio não é simplesmente colorir o final do dia
com alguma catarse, ou mesmo com a revelação de matizes
regionais, e sim, fazer tudo isso, matizes e catarse, numa vinculação
a mais estreita possível com o coração epistemológico
do evento. Nós artistas, já aprendemos que as investidas
racionais não tiram o brilho ou o espaço da intuição.
A incomensurabilidade intuitiva habita tanto o espaço da
ciência quanto o da arte, ou seja, discurso e intuição
saem ganhando quando surgem situações de confronto
e de negociação entre ambos...
E por que identidade cultural?
Primeiro,
pela estreita associação com o tema da diversidade
nacional (entenda-se como adjetivo relativo a nação).
Algo que remete a uma ecologia dos nichos culturais. Essa associação
entre biodiversidade e diversidade cultural é cada vez mais
freqüente.
Pretendemos
estimular a visão de que uma discussão sobre identidade
cultural tomando a Bahia como foco , irá na
direção dos inúmeros aspectos de intertextualidade
que nos constituem. A Bahia é, sem dúvida alguma,
uma criação coletiva, um intertexto, e a ocasião
é propícia para aprofundarmos que espécie de
"umbigo" é esse, até pela idéia homogeneizada
e distorcida que o tema recebe na mídia.
Além
disso, os avanços (e retrocessos) produzidos pela nossa discussão/programação
poderão ser pensados como um modelo aplicável a vários
outros contextos no Brasil.
Outra
razão: há grupos de pesquisa locais, de qualidade
indiscutível, voltados para o tema, e uma produção
a eles associada que pode utilizar a oportunidade para se fazer
presente de forma integrada e dialogante, como soe acontecer ...
Mais outra: as oportunidades de buscar uma fala articulada sobre
produtos artísticos são pouco freqüentes. O tema
da identidade cultural perfila criadores e teorizadores. Como se
comportam os criadores? Minha proposta lança um convite direto
aos diversos modos de criação que caracterizam a Bahia
hoje. Como falam os criadores de suas criações, e
dos contextos que as propiciam?
P-
E sobre identidade?
R-
Ser igual a si mesmo envolve muito trabalho, significa sobreviver
como identidade a uma série incomensurável de transformações existentes
entre quaisquer dois momentos distintos de uma existência. Não significa
existir num vazio, ou seja, neste universo, não há estabilidade
de ser, garantida para ninguém. Me parece que Paul Ricouer nomeia
essa dualidade interna como identidade e ipseidade, uma fricção,
um paradoxo permanente. Portanto, para que algo permaneça como si
mesmo, é preciso que mude continuamente e que absorva essas mudanças.
A análise cultural segue rumo semelhante. A identidade de uma cultura
ou segmento cultural é análoga a um processo, uma curva, um vai
e vem estatístico, o que se queira. Identidade significa ser e vir
a ser, ser e desejar ser, ser e não saber o que se é. Miasmas psicanalíticos
a parte, a identidade é sempre uma prospecção. O que é a Bahia,
que não se sabe de si mesma? Ocupo uma perspectiva especial, a de
ver uma Bahia da erudição musical, tão afogada nesses dias.
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