Continuação
da Auto-Entrevista (agora em prosa)
Creio que foi
Poincaré quem comentou a impressionante característica
desse universo que vivemos, onde por mais que nos desloquemos sempre
estaremos no centro. Estamos kantianamente condenados a encontrar
os objetos em nossa experiência a partir de nossas próprias
coordenadas. Não assusta, portanto, ouvir em Bach o espírito
germânico, seja na Chaconne para violino solo (que algumas
vezes aparece no mundo virtual do cinema como apetrecho de Sherlock
Holmes ou de Einstein, que de fato a tocava), seja nas Suítes
para violoncelo solo (executadas instigantemente por Rostropovitch,
e amadas, especialmente a n.5, por Ingmar Bergman em Gritos e Sussurros
e por Walter Smetak). Mas ouvir em Bach o espírito italiano
que o Barroco tardio herda do inicial e da Renascença, ou
então ouvir em Bach o Vivaldi que ele certamente admirou,
ou ainda, perceber que uma parte do espírito germânico
nos serve como definição de brasilidade nas Bachianas
Brasileiras de Villa-Lobos, ou então mais disparatadamente
ainda, ouvir o Schönberg que se apresenta em certos trechos
dos últimos quartetos de Beethoven, lá isso é
prova de que a música favorece tanto a manifestação
dessa centricidade que podemos apelidar de identidade (individual,
nacional, universal), quanto a troca incessante de perspectivas,
a intertextualidade febril quase promíscua. Essa ambigüidade
que a música oferece "essa indistinção
do 'meu' e do 'seu', em que o sujeito não sabe mais se ele
é agente ou agido" (Cf. Didier Weil), de poder ser uma
mirada, um ponto de vista, ou então o ponto de vista de um
ponto de vista, incita os compositores a trabalharem com dogmas,
como já dizia Stravinsky na Poética da Música,
que aliás inspirou os compositores baianos mais do que se
imagina (Widmer e Jamary especialmente), porque sem os dogmas pra
onde vai a liberdade? O dogma alemão, Beethoven inscreveu
numa de suas últimas partituras, Müss es sein? Es sein
müssen [algo como "É necessário? Sim, é
necessário...]. Trata-se de uma espécie de superego
cultural, um nível supra individual, uma lógica que
se impõe à criação, ou melhor, que a
própria criação impõe a si mesmo, uma
evidência nada desprezível de que a fala freudiana
sobre a renúncia instintual germânica (uma antiga revolta
contra a cristianização dos bárbaros que eclode
no nazismo) pode fazer sentido, e que Widmer gozava dizendo que
"quando um alemão ouve falar em cultura bate continência"
sendo tudo isso, ao mesmo tempo, um contraponto estrito com aquilo
que poderíamos inventar como um dogma brasileiro, e que forçando
um pouco a barra do Carnegie Hall e de seus freqüentadores,
quando lá estive em 1996, eu disse que seria "o samba
não pode parar", ou então aquela pérola
de personificação que Ataulfo Alves cantava antigamente
"eu sou o samba". Logo após minha breve fala, uma
pessoa da platéia me interpelou dizendo que o grande compositor
Elliot Carter havia afirmado ali mesmo que toda repetição
(em música) é fascista, algo que me increspou (haja
vista o samba, o batuque ...) e que me levou a retrucar raciocinando
que se alguém se obriga a não repetir nada numa música,
então esse alguém está repetindo impiedosamente
a taxa de variação dos eventos, ou seja, se a música
repete certas coisas ela contribui para a diversidade dessa taxa
de variação, essa flutuação entre informação
nova e velha, o radical que não repete seria fascista da
mesma forma... (Que caminhos esdrúxulos para uma conversa
sobre música e identidade no centro de New York, mas a culpa
foi desse ouvinte). Logo após o concerto, o eminente compositor
George Perle dizia não concordar que o Choros n. 8 de Villa-Lobos
fosse um primor de coerência musical, ao passo que o etnomusicólogo
Gerard Béhague, vermelho de raiva, ironizava a incapacidade
de entender o tipo especial de lógica que o nosso brasileiro
construiu com aquela obra prima.
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